TITANIC |
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Aline Carvalho |
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Campinas, interior de São Paulo. Três horas de uma tarde quente de rachar coco. Chegávamos da capital, depois de umas horinhas passadas no Premium Outlet, pedaço americano no impávido colosso. Um colosso, o shopping, que havia nos deixado de bom humor pelas comprinhas ajeitadas, uma saia, blusinhas, biquíni; o que é tão difícil de dar certo foi feito em quinze minutos, e ainda pela metade do preço. Campinas e um calor insuportável, almoço no Bali, re staurante freqüentado há décadas, porém hoje nada de torta holandesa, por conta das extravagâncias espanholas feitas na véspera na cidade da garoa. Campinas e a necessidade de abastecer, gasolina a preços bem mais convidativos do que nas montanhas do sul de Minas. Paramos no posto movimentado, eu a filha entramos na loja de conveniência, para uns chicletinhos que, de tão fortes, parecem líquidos e matam a sede. Voltamos para o carro e encontamos o pai com cara de quem se esforça muito para não dar uma sonora gargalhada. Assim que entramos no automóvel e colocamos uma distância razoavelmente respeitosa entre nós e os protagonistas do diálogo que está prestes a seguir, ele desabafa: - Vocês não vão acreditar no que eu ouvi. Olhamos, com a melhor cara de incrédulas que conseguimos arrumar. - Dois frentistas vieram conversar comigo. Perguntaram se eu já tinha assistido ao Titanic. Foi a senha para minha filha ficar mais atenta. Afinal, aos seus cinco, seis anos, assistira ao filme milhares de vezes. Tivera uma pasta cheia de fotos do ator. Ganhara uma camiseta com a estampa do mesmo em silk screen. - Mas, pai, esse filme passou há décadas! - exagera. - Então. Um dos frentistas disse que estava ansioso para ir pra casa ver o filme à noite. E me perguntou se realmente morria gente afogada. Rimos. O pai continuou: - Eu disse que sim, e eles ficaram pensando por algum tempo. Logo o outro declarou que era melhor morrer afogado do que queimado no céu. Supomos que se tratasse de uma referência a explosões aéreas, mas vai saber... E seguimos a viagem, em direção à terra que nos foi destinada e onde, graças ao relevo generoso, a temperatura era mais adequada à sobrevivência de seres humanos. Fiquei pensando nos dois frentistas durante o caminho. Trabalhavam no domingo à tarde, dia nacional de não fazer nada no sofá, a não ser tomar cerveja bem gelada e assistir à inevitável partida do Brasileirão, rezando para o juiz roubar, mas para o nosso time. Eu bem tinha percebido as manchas redondas de suor nos uniformes, e as gotas que se formavam nas testas, e que um dia Cony comparou a lágrimas. Discutiam filmes respirando um bafo que bem poderia ter saído do livro de Dante. Ao analisarem o horror da morte por afogamento e por acidentes aéreos, porém, decerto ficaram orgulhosos de abastecer meios de transporte terrenos esquecendo, por um instante, que eles são potencialmente mais letais. Naquela tarde, eles se julgaram, mesmo inconscientemente, mais sortudos que o Leonardo de Caprio. E estavam falando sério. |
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