AS VOZES DE ONTEM |
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Paulo Valença |
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1 À esquina que dá para a rua ?Porto das pedras? ficava o bar do deficiente físico Geovani, que hoje é uma loja de eletrodomésticos. E, lhe parece ver Geovani, baixo, tronco largo, braços musculosos, o rosto oval, corado, sorridente, que soltava as risadas dobradas, o cabelo rente ao crânio, às pernas fininhas, movendo-se gingando o corpo de um para o outro lado (daí o apelido de ?Requebra?), apoiado numa muleta... Defronte ao antigo bar, estão os edifícios residenciais, no outrora terreno com os galpões e as seções da Indústria de papel e celulose, a ?Minerva.?. O velho passa observando as cenas do passado. Dobra a esquerda, entrando na Rua Maria Estevão. À sua direita estão as residências conjugadas que hoje têm novos moradores. Na primeira residia João Testinha, que consertava televisão e rádios. Diabético, magro, sabedor da vida alheia do bairro. Sempre atualizado com as recentes novidades. - Aquela menina, a Cristiane, ?pegou? barriga. Fazia a pausa e concluía: - O cara não quer mais nada com ela, caiu fora! Também essas meninas não pensam, só querem ?curtir!?. Na casa vizinha, morava o sargento do exército, figura sempre ausente. Na terceira, o homenzarrão seu Inácio, deitado na rede armada de um pilar ao outro do terraço que era o prolongamento do bar sem fregueses, com a perna inchada, vítima de dois derrames e quando conversando, emitia palavrões. Caminha. Tudo mudado, alías, não poderia ser diferente, pois o tempo tudo modifica em sua marcha interminável. À esquina, da primeira travessa, à esquerda, morava a jovem branca, alta, esguia, de rosto bonito, cabelos negros, longos, mãe de um menino que se lhe assemelhava no físico. Quanta vez passou olhando com discrição para o terraço dessa casa, buscando ver a presença graciosa, que lhe despertava a sensação boa da ?energia? positiva, e que por timidez, nunca se atreveu a uma aproximação? Ah, tudo passou. Terá mesmo vivido aqueles dias? - Claro que vivi... O desabafo em voz baixinha, no hábito que adquiriu assim de repente de dizer o que pensa. Afasta-se. O prédio da Associação dos moradores, hoje se mostra como um armazém de construção. E a mercearia de Elísio, na mesma direção, um pouco atrás? Está o prédio de seis andares, com os inquilinos nas varandas conversando, ou com a atenção no movimento abaixo, dos poucos carros e pedestres. Por trás das residências, encontra-se o morro com as casas construídas sem simetria, com as escadarias estreitas, longas, os postes às laterais, mas ali também essas moradias se mostram outras, nas cores e formatos. - Tudo mudado... Novamente o desabafo baixinho. Respira e pára na lanchonete, aqui era a barraca do crioulo Saulo, baixo, gordo, sentado no tamborete, com as costas na parede da mercearia ao lado, a atenção presa na vida da rua: - Quem? Que nada! O homem mais rico dessa rua é o Mário, daquela casa verde, no fim da rua. Mas... Deixa pra lá! Parece-lhe ouvir a voz grossa, alta. - Me dê, por favor, uma água mineral. - Com gás ou sem gás? Indaga a adolescente morena, graciosa, atrás do balcão. - Sem gás. - Certo. Ele se senta à mesa próxima e percebe as mesas vazias, sem fregueses. - Aqui, senhor. - Obrigado. Fora as luzes das residências acendem. Nos postes das escadarias e no morro também. A noite nasceu. Saber que viveu aquele tempo... Por que ultimamente anda assim desejando se ver, nessa inútil tentativa de se reentregar ao passado? Será a morte se anunciando, ou aviso de um inesperado fato que... - O senhor deseja mais alguma coisa? Desperta das reflexões com a indagação ao lado da mocinha e, sorrindo: - Que é que se tem para se lanchar? - Bolo de forma. Empadinhas. Pastéis. ?Enroladinhos?. - Traga uns pastéis. - Certo. Dá-lhe as costas e retrocede ao balcão. Mocinha interessante! Também teve essa idade, foi jovem, com seus sonhos, a esperança de um futuro que lhe desse nova existência... - Passou, passou seu Augusto. - O que foi que o senhor disse? Inquire novamente a adolescente regressando. Ele sorri mais uma vez: - Nada não. Tou velho, falando sozinho. Ela fica mais séria e se afasta, deixando-o com o seu mundo, que é o das lembranças.
2 - Você Augusto, tenha cuidado: andando sozinho por aí... Do jeito como as coisas estão. A violência está demais! Ele sorri, e nada responde. Afinal, A Dora tem razão de se preocupar com as suas saídas, o caminhar por o bairro afastado, onde morou... - Você vai tomar o banho agora? - Vou. Pode ir esquentando o jantar. O corpo gordo da mulher deixa o sofá e entra na sala conjugada, para adentrar na cozinha ao lado e acender o fogão, no qual esquentará a comida do marido, que passa e entra no banheiro também conjugado. Tudo numa repetição de outras noites. Até quando assim? - Só Deus sabe. Abre a torneira e a água desce do chuveiro, forte, banhando-lhe o corpo magro, branco, trêmulo. No fogão a carne dança na frigideira, tendo D. Dora mexendo-a com vagar. Pensativa, de repente sente o receio, como um aviso...
3 - Minha filha você não pode calcular o quanto tenho sofrido nesses últimos dias! A mulher nova entende-a sim. E nada diz. Espera. - Seu pai aí nessa cadeira, sem falar direito, com a voz ?engrolada?... Derrame desgraçado! A filha então quebra o silêncio, solidária: - Mamãe tenha paciência. Vamos superar tudo isso. Deus sabe o que faz. As lágrimas. Os soluços. E o silêncio que as envolve. Na varanda, o enfermo olha a rua, de poucos veículos e pedestres sem ver, ?desligado? que estar da realidade, prisioneiro do outro mundo. |
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