Tema 195 - TRAPAÇA
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INSERTOS
Eduardo Prearo

Amaina o vento incontinenti a angústia ao entrar na sala à meia-luz, e as pétalas de uma rosa azul se soltam e caem sobre a mesa onde há caos. Há tanta coisa a fazer, mas o dia termina e ele escreve. Não lhe dão nada, não lhe dão amor; seria dar pérolas aos porcos. Olha da janelas algumas luzinhas ainda acesas, e também as luzes que clareiam as ruas. Olha as estrelas e encontra as três marias; a do meio parece estar um pouco acima das outras. Pega uma régua e con stata: sim, a do meio não segue exatamente a mesma linha das outras, mas o que isso importa? Nada o acalma e ele queria que o ter de lutar para sempre o acalmasse. Escreve, mas agora sem necessidade, sem aquela necessidade que meses atrás tinha, deliciando-se por estar compondo algo. Na sua idade muita gente já pendurou as chuteiras e vive com outros problemas, talvez sentimentais, quem sabe. Olha-se no espelho e grita, xinga-se. Seria tão fácil para outros, se esses outros fossem ele, resolver certas questões, pensa. Sair não é arejar, é comparar-se quase que o tempo todo. O pouco que lê o incomoda, pois os escritores lhe parecem tão bons, tão aptos a falarem sobre as profundezas humanas! Ainda é cedo para estar cansado. Relê um texto que escreveu, onde um personagem mora no nonagésimo andar de um edifício, onde as nuvens entram pelas janelas como espumas de barbear...

Amanhã completo oitenta e nove primaveras. Não, eu não sei se posso dizer que foram plenamente vivi das. Estou irritado, o tempo inteiro me irrito e me culpo, me arrependo. Aqueles anos todos em que eu estava irascível terminaram, anos em que eu me metia em uma encrenca atrás da outra. Agora já não tenho forças para insultar e então a cólera toma uma forma invisível, inaudível, ela se propaga telepaticamente. Se me perguntassem como uma pessoa má pode ter vivido tanto tempo, eu diria que não sou mau. Tenho me apegado às lembranças dos poucos momentos em que fui feliz, mesmo aqueles momentos em que eu não estava muito lúcido. Na verdade, acho que nunca fui deveras lúcido, e isso não quer dizer que fui sempre feliz. Não, fui muito pouco. Hoje os prédios são tão altos! Daqui do nonagésimo andar as nuvens entram pelas janelas, e outro dia até vi um disco voador, coisa que para mim agora não tem tanta importância. Gosto de me lembrar dos anos em que passei com Agnes; ela sim era uma escritora e me sustentou por um longo período. Eu escrevia também, mas nunca fui capaz de escrev er um livro, mesmo de finalizar um conto. Nunca tive imaginação. Ela um dia mandou-me embora, era um dia chuvoso. Fria e calculista, quis discutir a relação, mas eu queria dormir...

- Você não me serve mais, Yoan, saia daqui imediatamente.

- Mas meu amor, você sabe que não tenho para onde ir, não tenho dinheiro. E além do mais de que trabalharei? Se você quiser que eu saia, dê-me algum dinheiro, uns cinco mil, pelo menos.

- Nem um centavo. Quero que você se dane. Não há mais amor, não há mais sexo. Você sempre será um desconhecido para mim. Parece que tem várias personalidades. Uma eu sei que é agressiva, medonha. Preciso de proteção, não de alguém me ameaçando com uma faca.

- Mas essa história da faca foi sem querer. Eu não estava bem, não sou assassino. De qualquer forma, com essa arma branca eu consegui o que queria.

- Ah é? Então você confessa, não é? Confessa que me ameaçou com uma faca não porque é insano, mas porque queria meu dinheiro. Tenho um marginal dentro de casa! Saia daqui, já lhe disse, saia ou eu chamo a polícia.

- Não, justo agora que estava começando a escrever um livro!

- Se é assim, escreva, vá já escrevê-lo.

Por que suas nuvens têm tal densidade, por que os anjos não se materializam e não lhe falam qual sua missão, se é que tem alguma, por que deu tanta idade a Yoan? Nojo, nojo agora é o que tem de si mesmo. Crisado, abusa da pantomima, é outro, é tantos!, mas mais pra si próprio. Poucos reagem à sua cólera. Como é triste tudo, como não há mais nenhuma alegria, como ao invés de sentir o peso do mundo, é-lhe difícil sentir a leveza. Ser chamado amiúde de senhor é uma experiência nova, e ele não vê isso como formalidade; se tivesse vinte anos, talvez sim. Olha-se de novo no espelho e grita, mas a pessoa dentro do espelho reage.

- Pare de me olhar. Esquece-me, ó vagabundo!

- Esquece-me, ó pecado! Não acredito que o senhor seja eu. P arece sentir-se bem, até sorri. O senhor é apenas uma imagem sem intuspecção.

- Eu o vejo da mesma forma. Talvez eu seja aquilo que vocês chamam de inconsciente. Começou a chover. Que tal parar de me olhar e ir fazer o que tem de ser feito?

- Sim, toda essa bagunça.

- Sinto muito. Sinto muito também pelo fato de que o senhor jamais sairá do país. Outdoors, you would be homeless.

- Ainda não acredito no que estou presenciando. É uma fraude, eu não tenho ilusões de sentidos. Que coisa chata, estúpida! Quem lhe disse que desejo sair do país? Quem? E como ousas dizer que lá fora eu seria um homem de rua, se aqui também posso vir a ser um?

O espelho é quebrado em mil pedaços. Pelo chão espalham-se múltiplos eus. Ato contínuo, tenta catá-los, um por um, mas desisti. Senta-se, volta a escrever, mas nada o satisfaz. O tempo está passando, logo é manhã. Por que escreve no momento se está mui inquieto para exprimir o que sente? Não há nad a nas entrelinhas, não há literatura! Mesmo assim, continua a escrever, mas uma outra história...

Achava-se incapaz de encontrar um outro emprego. Não tinha amigos, e talvez por isso se sentia insano e inferior a todo mundo. Pensou que o que queriam, esses desconhecidos, era que ele tivesse humildade ou mais humildade. Olhou-se no espelho sujo de pasta de dente do banheiro, tomou o remédio para que o sono viesse logo, calou-se. Achava-se ignorante demais, todos o deixavam desesperado. Nada o acalmava, e o que acalmaria alguém como ele? Sentia que o olhavam como alguém que já não tivesse outro futuro a não ser o sofrimento e a miséria. Era bem dizer um marginal, um marginal viciado, indigno e fatigado. Estava entrando no inferno astral, mas nunca creu em infernos astrais. Será que estou doido ou as pessoas estão muito competitivas?, pensou. Ainda sem antecedentes criminais, sentou-se na cama e resolveu ler um pouco, mas tinha preguiça de ler. Seu problema talvez fosse o dinheiro: sem ele, chorava, com ele tornava-se uma pessoa mais insensível. Nada tinha sentido, nada do que ele fazia. Os outros sempre davam um sentido às coisas que faziam, mas ele não, não conseguia encontrar um sentido para o fato de escrever, por exemplo. Por fim dormiu de roupa mesmo. Acordou por volta das seis da manhã, achando que o esmalombariam no decorrer de um dia em que o fracasso seria seu encosto. Não pensava em suicídio nunca, mas naquela manhã essa idéia lhe veio à mente. Depois logo pensou em outra coisa, em Deus, porque achou que somente o fato de pensar em suicídio traria consequências ruins. Inútil, pensou. Inútil, inútil, inútil. Vozes que não sabia de onde vinha bradavam: malandro, malandro, malandro! Lembrou-se de que tinha medo, tinha muito medo. Da gripe suína, por exemplo, e de que falara a alguém desse medo, falara a alguém que não teriam dinheiro para seu ataúde.

- Não se preocupe não, a gente te corta em pedacinhos, te põe em um caixão de papelão e te joga no rio Tietê, disseram-lhe.

Sim, ele havia sido burro. Na certa a pessoa que lhe dissera isso pensara que ele quisesse ouvir outra coisa do tipo: ah, não, coitainho, não se preocupe, oh! Estava arrasado, sem forças pra continuar. Nada do que ele falava soava como algo sensato, vindo de pessoa adulta, madura. Vivia na superfície das coisas. O fato de ter passado dos quarenta o incomodava menos do que a nova experiência de ser chamado de senhor. Tomou um banho demorado, como os homens da pensão em que vivera faziam: eles ficavam quase uma hora debaixo do chuveiro de água quente. Havia agora centros de lazer, não sabia ao certo, centros para pessoas acima de quarenta, e quarenta já era para muitos terceira idade. Mas ele ainda procurava o emprego de seus sonhos. Não era madrugador, mas naquele dia resolveu sair cedo. Havia atendido uma ligação de um orelhão e o homem do outro lado da linha lhe oferecera um emprego após uma longa conversa. Não sabia do que se tratava. A primavera chegava e alguma aflição nele emergia talvez por causa do insuportável canto dos pássaros. Seu maior sonho era sair do país, tentar a vida lá fora, e mesmo com sua inteligência mínima achava que se morasse na Itália ou na Bélgica daria certo. Chegou à entrevista com quinze minutos de atraso, mas mesmo assim o atenderam.

- Sou George, bom dia.

- Bom dia.

- Bom, vamos ao que interessa. O senhor trabalhará para nossa empresa situada na Europa durante três meses e se gostarem de seu serviço terá o contrato prorrogado por mais um ano.

- Que bom.

- Mas o senhor terá de passar por um teste severo. Se passar nesse teste, conseguirá o emprego. Caso não passe, terá de voltar para seu país.

- Devo ser uma pessoa vagabundíssima porque todo emprego que procuro tem alguma coisa de muito difícil. Mas me parece que as pessoas que chegaram lá devem ter passado por algo semelhante. Eu aceito, de qualquer f orma.

- Cinco mil dólares se tudo der certo, de início.

- É um bocado de dinheiro.

- Se a Europa lhe agradar...O senhor já tem uma certa idade para dar certo no velho mundo. Não queremos que se torne um brazilian homeless

- Não, vou me esforçar. E quando tudo começa, quando saberei se vou mesmo?

- Hoje mesmo. Seu nome é Edgard, um belo nome. Sabe o significado?

- Sei, mas me esqueci. Você, se quiser, pode procurar em um desses livros que dizem o significado dos nomes. Acho que é fácil de encontrá-los em bancas.

Estava bem pronto na quinta, pelo menos achava que estava. Tentou escrever um pouco antes de fazer as malas, mas perdera a inspiração, a vontade que lhe vinha antigamente, algo parecido com desejo sexual. George o esperava no escritório, e Edgard estava apavorado com a prova que teria de passar.

- Não fique com essa cara de apavorado, Edgard. A coisa é simples. Está vendo essas cápsulas aqui? Terá de ingerí -las, são apenas oitenta. Mostre-nos sua coragem e obterá o emprego.

- Vou transportar isso pra vocês?

- Sim, sim. Mas pense na vida que terá lá fora, pense, use o cérebro, velho garoto.

- Está bem.

Edgard tomou as oitenta cápsulas em menos de trinta minutos e nada sentiu. Elas não estouraram nem nada. Valia tudo! No aeroporto, viu-se só, não tinha ninguém para se despedir. Os guardas o olharam com desconfiança e ele lhes virou a cara. Os guardas sorriram, murmuram algo de cunho sexual. A viagem foi tranquila, apesar de uma ou outra turbulência. Quando o avião aterrissou, Edgard foi o primeiro a se levantar. Ato contínuo, foi o primeiro a sair. Avistou o velho mundo e sentiu uma onda de felicidade. Um homem o esperava no aeroporto, um homem que lhe tocou o ombro e que lhe disse para acompanhá-lo. Ele tinha um sotaque bem engraçado. O lance da evacuação foi igualmente engraçado, e as cápsulas saíram inteirinhas.

- Qual o seu nome, gringo? Estou neste hotel há cinco dias e não me disse seu nome.

- Alan, pode me chamar de Alan.

- Muito prazer, Alan. E agora que já passei no teste quando começo no meu novo emprego?

- Terei de exterminá-lo. Não há emprego, não há nada.

- Exterminar-me? Mas fiz tudo direitinho?

Alan sentiu um certo dó de Edgard, e tirou imediatamente aquela ideia de extermínio. Chorou um choro esquisito quando Edgard lhe pediu um cigarro, gritando "as drogas, as drogas, as malditas drogas". Edgard bocejou e saiu do hotel, fugidio. O gringo não foi atrás dele. Com sono, sentou-se no banco de uma praça e ficou por um tempo observando os estrangeiros. O que faria dali pra diante? Pensou em escrever a história de um escritor sem inspiração, insatisfeito, um homem que quebrava espelhos.

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