Tema 194 - EXCLUSIVIDADE
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O ESPELHO E O GATO
Flavio Gimenez

Admiro os gatos e os espelhos, uns pela habilidade que usam de dissimular nossos próprios defeitos,relembrando-nos a toda hora que o tempo é nosso eterno companheiro e nossa permanente invenção e os outros pela simulação perfeita do afeto: Pode um gato ser real ou será um simulacro como nossa realidade inventada? Eu não sei de nada, já lí alguns contos de Borges tratando de espelhos ou seriam de Cortázar versando sobre a sensibilidade dos felídeos companheiros nossos desde a juventude da humanidade; duvido de há muito que sejam meros companheiros ou que sejam o produto de nossa ancestral cultura de preservação de nossos mais caros momentos, como se pudéssemos guardar nos olhos dos múltiplos gatos nossas mais recônditas vicissicitudes e anseios. O que mais poderia ser dito sobre nossos mais íntimos desejos neles está explicitado na relação de angústia da velha e seu gato, ela a tecer os casacos que seus netos jamais irão vestir e seu gato refestelado à sua sombra, satisfeito com o repasto e ambíguo nos movimentos de desfiar o novelo de lã e seus compridos bigodes. Não imagino o que pensa o siamês, com seu profundo desprezo e sua empáfia recatada, nem o que pensa a sua dona, adormecida pelo suave ronronar de seu bicho de estimação-como se o fosse. Acho mais que como Ibis, o guardião dos mortos, ele apenas aguarda o momento certo de raptar a alma da velha dona e levá-la para tão longe que ela não possa mais retornar.

Um gato ao espelho, essa então é a combinação perfeita da sincronicidade do deus Chronos com aquele que representa o mais profundo desejo de se eternizar que é Plutão, ou alguém ousa dizer que o Inferno está mais próximo da Terra do que o Céu jamais esteve? Quem é que ao ver um gato preto não sente até o sulfuroso cheiro do Canhoto com suas mil promessas de vida eterna, coisa que nem o evagelho apregoa a não ser para um grupo de ungidos? A persignação que se segue tem mais o efeito de autoproteção e o gato está ali, com o maroto miado, cruzando as ruas ao seu jeito, sem ser molestado a não ser que surja um moleque ousado e lhe jogue as pedras no dorso brilhoso e malemolente, bichano malandro de beco escuro revirando as latas de lixo da História.

Dê-se o trabalho de observar. O gato,seja ele de raça, seja ele um espécime dos mais sórdidos, nunca é transparente. O espelho reflete o seu contrário, tudo o que está indo nele se foi, no sentido inverso. Já ninguém pode saber o que vai na cabeça desses pequenos monstrinhos; são escusos, obscuros e nunca se sabe até onde vai a calma e a aparente tranqulidade deles, até que sobrevenha a unhada inimiga, a doce patada que afasta a mão do dono que imagina então que lhe falte ração, água ou mesmo um pedaço de bolo. Não, falta ao dono bom senso para trocar o bicho exclusivo e falso por um de pelúcia, menos auto-suficiente. Assim mesmo, ganham minha admiração pelo que representam de individualidade, de preservação do sentimento de natureza; a fera que se oculta em nossa espécie na deles vem à tona com facilidade e nos mantém sob distância segura de seus rugidos. É algo que nos comove e nos atrai, numa ambivalência insegura. Já o espelho... Qual deuses, qual nada, olhamos o reflexo e à vitalidade da juventude se sobrepõe a nossa mísera perspectiva de quanto mais maduros, mais incautos. Diga-o Fausto, que chamou a si Mefisto para num pacto perpetuar-se lindo ao espelho ou Dorian Gray, eternizado num quadro espetacular (como um espelho hiper-realista); só ele sabia o quanto se deteriorava ao olhá-lo em profundo horror.

Mire-se nos verdes olhos de um angorá: de onde vêm os reflexos faiscantes que lembram uma onda clara quebrando numa praia longínqua, num movimento de espreguiçar que traz a lembrança de antigas artes milenares quando homens, animais e deuses bebiam da mesma fonte? O rabo empinado se fixa numa posição, suas orelhas apontam para um local indefinido e seus pelos se eriçam, quando se diz que eles vêem coisas que os homens deixaram de ver: Seriam bruxos? Sim, já enfrentaram as fogueiras perseguidos como tais e sobreviveram. O que fazem estes seres quando se tornam livres de seus "amos" e circulam entre os móveis e gigantescos espelhos que se abrem aos seus gestos mágicos? Olhar-se-ão ao natural e sem nenhuma piedade, como o faço agora e habitualmente para agradecer o quanto a divindade me poupou ou sabedores de seu destino, soltarão um langoroso miado que chamará todas as gatas no cio em telhados acinzentados de nossas cidades ou tudo não passa de um rosnado maquiavélico a conjurar as mais baixas qualidades de todas as feiticeiras do Universo?

Não consigo imaginar mais nada de dentro desta gaiola em que me prenderam, de onde apiedado de mim mesmo observo o suave aproximar de meu fim, como um pássaro olha de longe o predador de sempre, falsamente seguro em sua alta morada. Eis que pego meu bichano e vou deitar: Quiçá eu durma agora (pura balela) e amanheça num céu de brigadeiro.

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