Tema 194 - EXCLUSIVIDADE
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SOB A LUZ DO SEU OLHAR
Eva Ibrahim

A vila era pequena, cerca de cinco mil habitantes, distribuídos na área urbana e rural. A população de caboclos se misturava aos imigrantes vindos de toda parte do mundo; eram refugiados da Primeira Guerra Mundial. Os alemães se fixaram em pequenos sítios, os italianos na fazenda de açúcar, os árabes e portugueses abriram comércios na rua principal. Formaram uma comunidade heterogênea ocasionando conseqüente miscigenação da população.

Samir era filho de imigrantes libaneses, filho do meio, o mais bonito. Os irmãos eram morenos e ele loiro de olhos azuis; amante da leitura, teatro e artes em geral. Autodidata, em tudo se envolvia; queria aprender inglês, desenho, dança e sapateado. Era elegante e vistoso, um "filhinho de papai", diziam as más línguas. Os pais tinham um comércio de armarinhos e ele vivia de pequenos negócios, já que não conseguia trabalho condizente com seus anseios. Queria ser locutor de rádio e ator de teatro.

Com apenas dezoito anos se apaixonou por uma cabocla do lugar; Tereza era seu nome. Uma moça bonita, alta, morena de cabelos negros que correspondia ao seu amor. O namoro não era aprovado pela família dela, que dizia que o rapaz era vagabundo e que ela iria sofrer muito com ele. Passaram a namorar escondido, encontros furtivos e muita resistência. A moça vestia-se de homem para encontrar seu amor e burlar a vigilância cerrada que sofria por parte de seus familiares. Finalmente houve o casamento contra a vontade da família da moça.

O início foi maravilhoso, os dois estavam apaixonados e a vida parecia um conto de fadas. Logo nasceu o primeiro filho e os problemas financeiros foram aparecendo. Samir não estava preparado para assumir tantas responsabilidades e a situação na casa não era boa, faltava dinheiro e sobravam contas para pagar.

Sua mulher começou a costurar para fora para comprar comida. O homem não se dava conta da gravidade da situação, não parava em casa; vivia atrás dos amigos do teatro. Uma velha tia foi chamada para morar com eles para ajudar Tereza com a criança e os afazeres domésticos. Samir vivia em noitadas enquanto á mulher trabalhava até altas horas. A situação que não era boa piorou ainda mais quando ela descobriu uma nova gravidez.

O segundo filho nasceu e a situação ficou crítica, o menino era doente e precisava de cuidados especiais. A jovem sofria calada, não podia recorrer á sua família. A sogra ajudava em tudo que podia, mas era insuficiente. Samir estava por demais ocupado correndo atrás de seus sonhos e não percebia o drama que sua esposa vivia.

O segundo filho estava com dois anos e ainda não andava quando a jovem teve nova surpresa, terceira gestação. Parecia que o mundo iria desabar sobre sua cabeça, precisava fazer alguma coisa. Desesperada e escondido do marido procurou uma parteira de caráter duvidoso, que lhe propôs fazer um aborto por certa quantia em dinheiro. A jovem nervosa trabalhou incansavelmente até conseguir a quantia tratada. Com a conivência da tia foi fazer a grande bobagem, que mais tarde lhe custaria a vida; um aborto clandestino.

Depois de alguns dias, começou a apresentar febre alta; o marido não percebeu nada. A tia jurou segredo e ao médico disseram que não sabiam a causa da febre, sendo tratada como se tivesse contraído Malária; doença comum na época. O tratamento piorou o quadro, depois de muitas perguntas conseguiram descobrir o ocorrido, mas era tarde demais e a jovem faleceu de aborto infectado. Tereza se foi deixando um marido perplexo e dois filhos pequenos.Samir estava só, não sabia o que fazer. -Como aceitar aquela situação? O choque foi grande, a morte o pegou de surpresa; amava a esposa do seu jeito.

Viúvo e muito jovem, com dois filhos para criar, recorreu á mãe, que acolheu as crianças e a tia. Ele precisava trabalhar duro para sustentar os filhos. Seus pais o ajudaram a montar uma loja de consertos de sapatos e á noite trabalhava como locutor no serviço de alto-falantes da vila. Corria um boato de que ele era culpado pela morte da mulher, o que o magoava muito. Pode ser que indiretamente fosse culpado, mas ele não sabia de nada sobre o ocorrido. Ficara mal visto na comunidade, mas, lutava para sobreviver.Guardou um ano de luto evitando o falatório das comadres do lugar.

Apesar de muita tristeza ele percebeu que a vida continuava e começou a sair novamente. Freqüentava o grupo de teatro, os bailes e as festas. Saia e flertava com as moças. Uma o agradava muito, era a Rose, filha do Seu Francisco, um caboclo do lugar. A moça tinha quinze anos, era baixinha e moreninha. -Uma beleza! Samir dizia que era uma "abelhinha". O amor veio com muita força. O interesse era mútuo, começaram a namorar e a família da moça reagiu; não entregariam sua menina para aquele monstro, que já havia matado a esposa. A moça foi surrada pela mãe, ficou de castigo, mas não adiantou e o pai acabou permitindo o casamento. Após o matrimônio foi morar com Samir na antiga casa dele.

Alguns vizinhos tratavam o casal com hostilidades, principalmente a moça quando o marido não estava. Samir e Rose se amavam muito e procuravam ignorar as maledicências. Vieram os filhos, duas meninas e um menino e os ataques aumentaram; agressões verbais á mulher e aos filhos. O homem estava acostumado com os falatórios e deixava a vida correr, dizia que com o tempo tudo se ajeitaria. Um dia o seu gato apareceu morto com sinais de envenenamento; Samir não se conformava, gostava muito do bichano. A guerra foi declarada, não dava mais para agüentar aquela situação.

Homem tranqüilo, de maneiras finas, não era dado á discussões e resolveu tomar uma atitude. Em primeiro lugar precisava tirar sua família dali. Com a ajuda da mãe comprou um terreno em um loteamento novo, do outro lado da vila. Lá começou a construir uma casa com material comprado em demolições. Trabalhava durante o dia na sapataria e nas horas vagas se dedicava á construção. Samir estava com uma idéia para revidar tantas agressões gratuitas; seria uma obra de arte feita com exclusividade para aquelas pessoas maldosas. Ficaria até tarde da noite para concretizar seu plano, não importava quantas noites levaria.

O sapateiro era desenhista e com muita habilidade fez um molde de um gato de um metro e meio de altura; recortou oleado preto e costurou todas as partes do animal.Encheu o corpo do bichano com paina para que ficasse leve e pudesse balançar com a força do vento. O gato preto ficou medonho e assustador; tinha grandes olhos de madrepérola cor de rosa, que brilhavam no escuro.

Planejou mudar em três meses, mas antes pregou o gato em um bambu de quatro metros de altura; depois o fixou perto do muro do vizinho que ele acreditava fora o responsável pela morte do seu animal de estimação.

Quando ventava o bambu envergava e o gato dobrava sobre á casa do homem, deixando-o irado. Se o vizinho abrisse a porta da cozinha dava de cara com o bichano; muito nervoso foi á delegacia dar parte de Samir. Os policiais vieram ver, mas nada fizeram porque o gato estava no terreno dele. - Ali ele mandava, disse o delegado.

Nas noites de temporal o gato balançava muito e brilhava quando o céu era cortado pelos raios; assustando quem passava por ali. A situação era terrível, Rose não podia sair á rua que era ofendida com palavras de baixo calão, ficava calada para não provocar brigas; sofria em silêncio. Era atacada com laranjas podres e xingamentos quando aparecia no portão.

Finalmente o dia da mudança chegou. O caminhão encostou e todos os móveis e utensílios foram colocados na carroceria; menos o gato preto. Samir dizia ser exclusividade do local.
Mudaram de casa para uma nova vida, mas o animal ficou para atormentar o vizinho e tomar conta da antiga morada.

Depois de alguns meses a casa foi vendida e o novo dono queimou o gato preto, que já estava rasgado pelas pedradas recebidas, em uma grande fogueira; depois mandou benzer á casa. Os vizinhos comemoraram, mas ficaram por muito tempo com aquela visão estarrecedora do animal balançando no bambu e passaram essa história á filhos e netos.

Pagaram suas maldades sob a luz do olhar de um enorme gato preto de oleado brilhante, que ninguém se atrevia a tirar dali. Temiam prováveis maldições proferidas por Samir.

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