FELICIDADE |
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Aline Carvalho |
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Paredes brancas, chão branco. A frieza da luz reflete-se nas arandelas de metal. Eu sei que o ambiente precisa ao menos parecer higiênico, mas a gente já fica nessa terrível disposição de espírito e toda aquela brancura não colabora para melhorar o humor de quem ali está para a sessão de ser revirada, apalpada, espremida e visualizada nos mais recônditos rincões. Se tem coisa que me deixa de mau humor é essa batelada de exames anuais. Nunca vi o tempo passar mais depressa do que entre um resultado e outro. Além do constrangimento do exame em si, é claro (uma vaia para o inventor do transdutor transvaginal), fica o medo da conclusão. Você entra ali uma pessoa saudável e sai paciente terminal. Vai saber... Além disso, minhas duas avós (que Deus as tenha) morreram com 102 e 100 anos, sem jamais terem feito um ultrassom. Devo confessar também que ambas cozinhavam com gordura de porco e nunca caminharam na vida. As duas tiveram maridos trabalhosos e problemas financeiros... vai saber. Sentada ali num dia gelado de maio, estranhamente acontecido em agosto, tento me distrair, abstraindo-me das violações que estava prestes a sofrer. Minha filha mais velha faz terapia, gosta e acredita em umas técnicas de hipnose sobre as quais me falou. Tento-as, sem sucesso. Ainda bem que funcionam para ela. Comigo, o que funciona mesmo é aquele cantinho da memória em que guardo momentos especiais. Como aquele dia perfeito numa praia caribenha. Além da nossa, apenas mais uma família na grande faixa de areia vazia. Estereótipo de praia: areia morna, branca de talco. Coqueiros. Esmeralda translúcida na água. Grupos de árvores aqui e ali, na esplendorosa manhã. Sento-me apoiada no tronco de uma árvore, ambas em paz. No meu campo de visão, a filha mais velha planta bananeira dentro da água, as pernas quilométricas brilhando, brancas. O rapaz, como sempre, às voltas com os peixes. Pequenos arcos que prateiam no ar, atrás do pão subtraído ao suculento café da manhã do hotel. A alguns metros dali, a caçula brinca com a criança da outra família - francesa. As duas comunicam-se perfeitamente, e não através de gestos. Na verdade, elas conversam, cada uma na sua própria língua, traduzida simultaneamente para a linguagem da brincadeira. Risadas ecoam no ar. Ao longe avisto o marido, passos rápidos e vigorosos na caminhada matinal. A pele está naquele moreno que o sol concede antes de cobrar seu tributo em forma de descamação. Pouco antes, ele havia levado os dois moços para dirigir, pela primeira vez. Fizeram-no em uma praia do Caribe, num jipe alugado. Donos do mundo. E assim, a lembrança de um dia perfeito em branco e verde me ajuda a ultrapassar um momento difícil, como se a felicidade fosse exclusiva do litoral da América Central e não pudesse existir numa cidadezinha montanhosa da América do Sul. |
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