Tema 193 - O QUE FOI QUE EU FIZ?
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O QUE FOI QUE EU FIZ?
William H. Stutz

(Para Edison Veiga e seu belo conto indez)

Por um instante lembrou-se de quando era criança. Mas logo agora? Depois de tanto tempo? Não bastava o tormento diário?
A dor, o suplício de simplesmente existir não eram suficientes? Tinha que voltar a um passado que jurava esquecido e apagado? Que saco!

Essa mania de inventar pessoas carregava desde pequeno. No começo as separava por grupos. Havia  as do mau e as do bem. Às vezes alguém do mau ia para o lado do bem, o contrário raramente acontecia.

A escrota da professora que insistia em ensinar tabuada e francês era a chefe da turma dos maus. Apesar de tudo a maldita era bonita e gostosíssima. Com frequência ela era capturada pelo seu grupo. Ele sempre comandava os do bem, era o chefe supremo.
Era com um prazer, um sadismo extremado que ela era submetida a torturas inimagináveis. Noite após noite, no silêncio de seu quarto as sessões prosseguiam cada vez mais requintadas. Ele lembrou também de como nessas horas ardia em tesão sem controle. Coração aos pulos em prazer sob as cobertas.

Não antes de ordenar a fogueira para a desafeta que aos prantos suplicava misericórdia. Seu olhar de gelo parecia nada ouvir.
Tinha certeza que se não a queimasse naquela hora, depois do saboroso êxtase seria impossível. Ela perdoada e solta. Sentiria culpa, remorso, choraria. Não queira isso!

À fogueira, infame! Gritava baixinho para ninguém mais ouvir, gesticulando e fazendo a cama ranger.
O castigo máximo acontecia sempre em praça pública, aliás, no centro do pátio do colégio a pira  era erguida. Os feixes de madeira eram alinhados aos pés do tronco. A mestra condenada era amarrada com as mãos para o alto, cabelos desgrenhados, roupa em farrapos deixando sempre seus lindos seios à mostra. Delírio, febre.

Todos seus colegas sempre estavam lá alucinados.  Ele podia sentir o terror nos olhos dos outros professores e diretores. Em seus sonhos ele era respeitado e reverenciado. Ele detinha o poder absoluto, os outros meninos abriam caminho para ele. As meninas o desejavam sob lençóis.
Muitas das vezes era seu pai ou sua mãe os réprobos. Mas eles nunca eram reduzidos à cinzas. Sofriam torturas mais brandas e rapidamente eram readmitidos na turma do bem. Aqui não tinha prazer, sonho broxante.

Hoje ele sabe. Entende que sua consciência, sua formação religiosa mesmo que nas coxas o impedia de ser mais violento para com os pais.
E para piorar tudo de vez,  lembrou-se da infância real. De como era subjugado por seus colegas de escola e de rua. Foi uma criança franzina e covarde de poucos, poucos nada, nenhum amigo.
E agora se sentia menor ainda, pois sabia que seus sonhos eram nada mais, nada menos do que versões baratas de filmes vistos e livros lidos. Sentiu náuseas.

Hoje em suas coleções de gente predominam as pessoas do mau.
Em sua Auschwitz interna queimam os corpos de quase todos que o cercam. Os acontecimentos nem tão recentes o fizeram  de vez amargo. Carregava puro ódio por qualquer que dele se aproximasse.
Suas coleções agora não eram apenas de pessoas inventadas. Cresciam a cada esquina, a cada bar, a cada passo. Já não era em nada prazeroso.

O que faria de sua oca vida  se perguntava a cada segundo.
Sacudiu a cabeça violentamente como a espantar tantos pensamentos confusos. Passou a mão devagar pela saliente cicatriz que insista em querer saltar lhe a face na esperança que fosse ela também apenas mais um dos delírios de sua imaginação.

Carros e mais carros. Motos, buzinas e fumaça. Estava quase chegando em casa, e isso sim o aterrorizava.

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