Dado que Amarílis e Dora tivessem saído para o cinema, resolvi aproveitar a noite fria em casa, revirando os papéis que eu mesmo guardava na gaveta do armário da sala.
Era lá que eu punha, acumuladamente, as meias folhas de papel rabiscadas pouco a pouco, com as idéias de histórias que sempre gostei de contar.
Vez por outra, numerava as folhas, na esperança de um dia organizá-las e ter idéias para sempre e escrever mil livros.
Comecei revirando e encontrando as antigas amigas. As folhas de papel, algumas já amareladas, me conheciam. Eu sabia das que mais gostava e sempre reencontrava aquelas de quem tinha um pouco de raiva. E as ameaçava de pô-las fora, mas na hora exata, desistia, de medo que me fizessem falta um dia. Já de outras, tinha verdadeiro ciúme, e não cria ter sido eu mesmo que as criara. Eram especialmente poemas. Nunca tinha tido tempo e inspiração para textos longos, mas nos poemas me detinha mais tempo. Resolvi separá-los numa outra pilha e até envolvê-los num envelope de plástico: eles dariam livros mais rapidamente.
A gaveta estava entulhada de folhinhas de papel. Resolvi removê-la e me sentei no sofá da sala, com a gaveta no colo, a essa hora cheio de pó e saudades.
Ali, durante horas, revi todos os projetos que havia feito já há alguns anos. Havia muito tempo que não escrevia nada. Encontrei numa folhinha até o índice de um livro: o escritor ansioso já elaborava os capítulos antes mesmo de escrevê-los... Eu havia quase abandonado tudo aquilo, e reconhecia agora, mais uma vez, ser aquela a minha riqueza. Através daquelas pequenas folhas me propunha expressar o que realmente era minha criatividade. Talvez ainda um pouco infantil, mas ávida por desabrochar. Na vida, deixei o caminho das letras, trilhei o caminho dos números. Gerente de um banco, tinha uma vida feliz, com esposa e filha. Só tinha um defeito: não gostar de cinema. Ao menos dos filmes que elas gostavam e que nos separavam todo sábado à noite. E naquele sábado revi o que deixei e me encontrei em mim.
- O que foi que eu fiz?- disse em voz alta, na sala grande e vazia.
Corri em busca de uma folha de papel, desta vez inteira. Rabisquei novas idéias que dessa vez, levaria adiante.
Da sala, fui ao computador, comecei ali mesmo a digitar o que me vinha à cabeça.
Cria poder guardar, a partir dali, minhas idéias num lugar mais seguro.
Cheguei quase à meia-noite escrevendo. Nada de poemas. Quatro páginas: meu primeiro capítulo.
Na porta, o trinco girou. Amarílis e Dora de volta. A gaveta poeirenta em cima do sofá.
- O que foi que você fez?- e entrou pela sala voando - Vai sujar todo sofá!
- Calma, deixa que eu limpo!- e mudando de conversa - Foi bom o filme?
- Foi ótimo!- desse você ia gostar.
- Tá certo, na próxima vou com vocês ...
- Como assim?- Dora estava até agora silente - Resolveu mudar de idéia?
- Resolvi. |