Tema 193 - O QUE FOI QUE EU FIZ?
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MISTURA FINA
Flavio Luengo Gimenez

Dizem as más linguas que ele caiu na vida, tanto tentou que finalmente conseguiu escorregar para a vicissitude deixando de ser uma mulher respeitável para se tornar uma das damas de meu bairro predileto, o Butantã. Na verdade, ela era ele, fazia tempo que queria fazer isso mas como tinha vergonha dos pais e nunca havia experimentado nada que fosse extraordinário, ficava só na vontade. Descobri que ela era ele na verdade há pouco tempo, porque ela adorava se despir na rua e um dia eu passava com o carro e simplesmente não acreditei no monumento que se desnudava em frente ao Jóquei Club, de modo que tive de parar para ver os movimentos daquelas bem torneadas coxas e havia algo de familiar em seu rosto, seriam as sobrancelhas? Qual não foi meu espanto ao encontrar --seria meu antigo amigo de colégio?-- vestido de calça brim apertadinha a lhe delinear voluptuosos quadris, um cigarro nos lábios carnudos e a indefectível voz rouca que dava a todo o conjunto uma sensualidade que se aproximava do insuportável porque forçada. Ela/ele notou meu olhar e tratou de esconder o rosto porque me reconheceu, transmutada em libélula deixando de ser meu amigo para se transformar numa vampira gritalhona que cuspia impropérios:

--Vai embora! Coisa ruim! Maldito!
--Mas, Cássio...
--Não me chamo Cássio! Sou Perla!
--O quê? Sinceramente, Cássio!

Ela vociferava, perguntando o que eu fazia ali se não queria sair com ela, se estava ali para atrapalhar seus planos, que só ela sabia de seu destino e desatou num choro baixinho que de verdade meu amigo jamais seria capaz de externar porque era duro, era seco, era sério e tímido.

--Por quê me chama de Cássio? Jamais tive esse nome!
--Está bem. Perla.
--Assim está melhor.

Acalmando-se, Cássia (pensando bem, é melhor para que vocês entendam minha confusão mental) virou os olhos frios para mim enquanto eu falava...

--Mas você não trabalhava na Honda? Não vendia carros como poucos? Conhecia você de lá. Como vão seus pais?
--Meus pais? Que sabe sobre meus pais?
--Como assim...
--...Perla!
--Sim...Como assim? Seus pais lhe davam de tudo, estudou em bons colégios, éramos amigos!
--Meu filho, moramos na mesma cidade mas somos de mundo diferentes! Meus pais morreram, chamo-me Perla, minhas escolas são a rua e os gajos que me importunam e tenho mais que fazer, bocó! E de Honda, só conheço a ronda da Rota que vez em quando bota a gente no xilindró.Meu Pai, que foi que ue fiz para merecer isto?

Jurava que Cássia, ops, Perla, tinha um quê de abrutalhado quando falava assim, mas seus quadris eram fenomenais e mais de uma buzinada a fêz sorrir para os passantes, como se quisesse disfarçar o ridículo da situação, um moço bem vestido conversando com uma piranha na rua sob um frio de bater queixo. Aliás, não entendia como ele...ela passava tanto frio e deixava aquelas coxonas de fora. Óbvio, merchandising do que ela ou ele tinham de melhor! Cássio dava uns meneios de ombros que denunciavam sua condição de vagabunda.

--Onde aprendeu a fazer assim?
--Assim o quê, ô cacete?
--Cássio!
--Perla, porra!
--Desculpe. Perla, que modos são esses?
--Olhe, neném, não estou aqui para bater papinho. Tem uns caras ali que se eu estalar os dedos, você vai ter bem mais que cacos de ossos para juntar. Desinfeta, malaco!

--Me diz: Quando foi que...bem...
--Quando foi o quê? Ai meu Deus, no fim vai querer que eu cavalgue de ferradura e chicotinho.
--Quando caiu nessa vida?
--Meus pais morreram, de modo que tive de me virar! Virei empregada doméstica mas ganhei bem mais do que deveria de dor nas costas. Me virei, filhinho de papai!

Aquele não era definitivamente Cássio, Ops, me confundi todo. Era Perla, era mesmo uma piranha, mas era uma piranha bonitinha, recém adquirida, uma piranha em formação, daí talvez o fascínio que exercia na moçada que passava buzinando e dizendo para ela toda sorte de coisas que certamente ela estava mais do que acostumada a ouvir. Uma piranha bonitinha, que teria sorte se um dia não amanhecesse fria, gelada como muitas que eu já ouvira falar; que tipo de vida teriam estes seres?

--Você mora sozinha?
--Não. Moro com meu marido!
--É casada?
--Sou; com seu irmão.
--Mora aqui perto?
--Bem longe de você!
--Porra, Perla!
--Ai caraca. Vamos fazer assim. Sou Cássio, trabalhei na Ronda, ou Honda, um militar da Rota me iniciou nessa vida difícil, virei mulherzinha da rua porque casei com seu irmão; fui despejado de casa porque meus pais se suicidaram e eu tive de sustentar a família, não tive escolha e você já está me enchendo o saco! Carlão!

Ao seu chamado, um, não, dois grandalhões(deviam ser gêmeos) começaram a correr em minha direção. Minhas pernas ganharam vida por sí prórias, como me puxando para dentro de meu carro, um dos gorilas tentou me pegar e ainda tive tempo de ouvir algo como um grunhido estranho:

--Pega que é fresco, ainda tentou me dizer que eu era outra...Pega!
--Vem cá filhodaputa! Vem cá que eu te amasso essa cara!

Não me pegaram, não, senão eu não estava contando a história. Por via das dúvidas nunca mais passei ali de carro meu: Se passo, passo de táxi e olho de longe a Cássia, o Cássio, a Perla ou a morena que exibe fartos quadris ao largo, protegida por braços poderosos ocultos na escuridão da via pública.

Há mais coisas na via pública do que entre o céu e o inferno. Certamente, Dante encontaria muitas Beatriz na rua.

Todas por um triz!

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