Tema 193 - O QUE FOI QUE EU FIZ?
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O GALO ÍNDIO
Eva Ibrahim

O dia amanheceu brilhante após a chuva da madrugada, as plantas ainda abrigavam as gotas de água em suas folhas e flores; a natureza parecia sorrir á luz do dia. Alguns pássaros chegavam para pousar nas árvores dando vida ao ambiente; um gato olhava o movimento deitado sobre as telhas da casa do vizinho.

Os raios de sol batiam nas penas da ave que resplandeciam como se fosse um arco-íris; enquanto a criatura esperneava, estaqueado nos bambus da cerca. O galo emitia um som estranho diante do meu olhar de espanto e terror; mal podia acreditar que fora eu que fizera aquilo. Como explicar aquele ato de selvageria? O leão que todos trazem dentro de si mostrara suas garras em mim, uma pessoa que em estado de normalidade não matava nem baratas.

Eu morava em uma casa simples, que tinha uma horta e um galinheiro nos fundos do terreno. Leonardo, meu marido, passava suas horas de folga mexendo a terra e cuidando das aves, que era fonte de alimentos e satisfação pessoal dele. Fora criado em um sítio, por isso gostava tanto do quintal. Verduras, legumes, ovos e frangos eram colhidos ali mesmo; havia fartura no local. A minha filha mais velha estava com onze meses de idade e andava segurando nas coisas; era uma criança linda e graciosa.

O galinheiro fora feito de bambus verdes enfileirados e entrelaçados com arame. Havia uma parte de alvenaria coberta com telhas para proteger as aves da chuva e garantir os ovos e novas ninhadas de pintos. Separadas por seções, as poedeiras de um lado e as chocadeiras de outro; o galinheiro era limpo e organizado. Tudo bem feito e pintado de branco; uma mini-granja, dizia o homem orgulhoso.

Leonardo comprou um galo índio para cobrir as galinhas; a ave era de raça criada para rinhas de galos. Tinha penas coloridas de cinza azulado, marrom avermelhado, preto e branco; o Rei do galinheiro era grande e imponente. O homem passava horas olhando a ave e dizendo que faria uma criação de seus pintinhos. Quando recebíamos visitas ele as levava para conhecer o galinheiro mostrando sua ave predileta. Os outros frangos, aspirantes á galos, foram para a panela; o galo índio reinava sozinho.

Entre meus afazeres de dona de casa estava alimentar as aves pela manhã e á tarde. Leia, minha filha, adorava olhar os pintinhos correndo atrás da mãe. Quando eu pegava a vasilha de milho ela sorria e erguia os braços para que eu a pegasse no colo. A menina ficava no canto olhando as galinhas correr para comer os grãos; era uma festa que se repetia todos os dias.

Naquele dia o ritual foi seguido e de repente o Rei do galinheiro surgiu e pulou sobre a cabeça da menina. Fiquei paralisada imaginando a criança cegada pelas enormes unhas pontiagudas do galo índio; estava enlouquecida. Uma fúria inesperada me fez agarrar o bicho e espetá-lo na cerca de bambu. As pontas afiadas penetraram nas carnes da ave que se debatia emitindo uns cacarejos e batendo as asas. Peguei a menina e quando vi que não havia acontecido nada de mais grave, além do susto, fui voltando ao normal. Leia chorava e tentando acalmá-la eu olhava o que havia feito e não sabia o que fazer; estava sem ação.

Como um socorro Divino, Seu Luís, o vizinho olhando sobre o muro perguntava o que estava acontecendo. Quando o homem viu a ave espetada ficou espantado e correu para a minha casa me socorrer. Entre lágrimas lhe contei o ocorrido e pedi para que ele sumisse com o galo dali; podia comê-lo se quisesse. Saiu dizendo que teria que sacrificá-lo, pois, seus ferimentos eram profundos. O Rei do galinheiro de Leonardo iria para a panela do vizinho, porque eu jamais poderia comer aquela criatura que quase me matou de susto.

O problema fora resolvido momentaneamente, o pior viria depois. Eu não pensara na reação do dono da ave, passei o dia com o coração na mão. Enquanto a panela de pressão da vizinha cozinhava o galo soltando o vapor pela válvula eu voltava á realidade e por mais otimista que fosse sabia que a história não havia acabado.

Meu marido chegou do serviço fazendo festa para a filha e foi logo me beijando. Eu estremeci quando ele perguntou se estava tudo bem. Tinha que lhe dizer que seu galo estava sendo o prato principal do jantar do vizinho. Nunca fui covarde e resolvi enfrentar a situação, contei tudo sem tomar fôlego. Leonardo me olhava com raiva dizendo que eu era doida; discutimos até a hora de dormir. A paz na minha casa estava seriamente comprometida; uma nuvem negra pairava no ar.

Aquela foi a primeira briga séria que tivemos; ficamos um mês sem conversar. Leonardo respondia com monossílabos o que eu perguntava e não aceitava nenhum tipo de carinho; o homem estava enfurecido. Foi necessária a intervenção da mãe dele para que voltasse a falar comigo e mais um mês para me perdoar. Depois de anos passados ele se refere a mim como "louca" quando se toca no assunto e eu pergunto: O que foi que eu fiz? Então, eu mesma respondo, dizendo:

Feri mortalmente uma ave para defender minha filha e tenho certeza que o faria novamente em situação de perigo. Afinal, meu instinto de mãe continua vivo e o leão que trago dentro de mim está apenas adormecido.

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