Nos domingos, quando fazia sol, ia pedalar com o filho no parque. Ele mandou soldar uma ponta de um cano no guidon da bici do filho e a outra ponta encaixou embaixo do próprio selim. Assim, quando ele pedalava, o filho vinha atrás e não se perdia nem precisava de rodinhas nem tinha o perigo e a encheção de saco de ter de descer da bicicleta e pegar o filho pela mão em todas as esquinas e semáforos pelo caminho. Quando o pai parava, parava também o filho, e quando o pai partia, puxava o garoto com ele. Era um bom pai o Guilherme.
Um dia, ia pedalando rente à calçada, porque ali não tinha meio-fio, puxando o filho. Era segunda-feira, eles nunca andavam de bicicleta nas segundas-feiras. É que o Guilherme teve de trabalhar no fim de semana e o chefe deixou ele sair mais cedo na segunda.
Andavam no meio do trânsito, era quase hora de do rush. Bem quando passavam pela saída de uma garagem subia uma Mercedes que não teve tempo de frear. Guilherme deu uma guinada para a esquerda e logo voltou para a direita para desviar de um ônibus. Uma manobra salva-vidas calculada num átimo, que porém não levava em conta o reboque, a bicicleta do filho. O ônibus colheu o menino e derrubou o pai, que escorregou até parar embaixo de um Gol estacionado. Romperam buzinas, gritos e sangue, muito sangue.
Guilherme pensava só no filho. Não pensava no rastro vermelho que ele mesmo deixara pelo chão, não pensava nas suas costelas, nos seus dentes, não pensava na dor. Na tanta dor de uma fratura exposta. Não teve pensamento para o pedaço de osso que lhe brotava da coxa. Não tinha noção de que aquela dor era insuportável, de que não podia caminhar. Desafiou o senso comum, a medicina e a anatomia, saiu debaixo do carro, arrastou-se até a frente do ônibus, lá muitos metros à frente, lá onde estava a bicicleta do filho, ainda atacada a um cano quebrado. Lá onde se juntavam pessoas mudas. Se apressou a chegar até o filho, até os pedaços do filho. Chamava o seu nome, gritava "não, não", como se gritando forte o suficiente pudesse convencer o juiz a anular a jogada. Só alguns segundos. Só o tempo de olhar com atenção para a garagem antes de atravessar. Só o tempo de mudar o imutável. Ninguém tentou segurá-lo. Ninguém tentou impedir que ele se agarrasse àquele corpo inerte, esquartejado, ensanguentado, caído na pista. Não haviam vértebras para imobilizar. Não havia vida ali para salvar. O pai gritava. Que alguém fizesse alguma coisa. Que alguém o acordasse daquele sonho ruim. Que alguém persuadisse o motorista a dar uma ré, voltar atrás, refazer a cena do início. "Foi um segundo, um segundo não pode valer mais do que uma vida". Ninguém veio consolá-lo. Ninguém sabia consolar aquele estranho.
Não se sabe quanto tempo se passou até que chegasse uma ambulância. Vieram buscar o pai. O filho tinha que esperar a polícia e o Instituto Médico Legal. Guilherme não quis ir. Queria ficar com o filho, esperar a mãe, "alguém tem que avisar a mãe". Disse que aceitaria um analgésico, mas que não embarcava na ambulância. Deram-lhe o que queria. Esperaram que se adormentasse, depois o carregaram na maca e o levaram para o hospital. O filho ficou no chão até que se fizesse noite, sozinho, coberto por um pano que alguém emprestou, esperando que se tirassem todas as medidas e todas as fotos.
Quando o pai acordou sentia uma perna pesada, o peito espremido. Aos poucos começou a ter consciência da dor. Abriu os olhos e viu a esposa. Eles se olharam, deixaram vazar lágrimas, se abraçaram. Tornaram a se olhar. Ele queria saber se o filho estava mesmo morto. Ela queria perguntar como aconteceu, só tinha notícias desencontradas de um policial que aprendera de testemunhas. Nenhum dos dois teve coragem de falar. Nenhum dos dois encontrava palavras que não ferissem. Enfim ela suspirou, desviou o olhar para a janela e disse "o enterro é amanhã". Disse "o enterro", não disse de quem. O nome era palavra que fere. "Perguntei ao médico se você pode ir, ele disse 'vamos ver'. Vou reservar uma ambulância para levar e trazer você de volta, se for o caso".
Ir de ambulância ao enterro do filho. Aquela imagem fez brotar mais lágrimas. Chorava-se por qualquer coisa naquela hora.
Ela se preocupara de arranjar que ele fosse ao enterro, era sinal de que talvez não lhe desse culpa. Mas isso não servia de consolo. |