Aquela minha turma da oitava série era mesmo muito unida.A maioria de nós já estudava junto desde os primeiros anos do ginásio, com poucas carinhas novas no grupo.A modesta escola municipal era a única do bairro onde morávamos.Ali aprendiam juntos crianças pobres das comunidades carentes do local e crianças de classe média, mas entre nós não haviam menos ou mais favorecidos sociais.Éramos todos tão amigos que nos tratávamos e nos protegíamos como uma única família.
Aconteceu de uma professora nossa de matemática entrar de licença médica no fim do terceiro bimentre, e a professora substituta pegou cisma com um colega do grupo.Dizia que ele tinha um riso debochado.O coitado não podia mais rir na sala de aula que ela já dava uma tremenda bronca nele, ou o colocava pra fora de sala.Ele até era debochado mesmo mas no caso da professora em questão era pura implicância.
O fato é que tal implicância rendeu ao pobre duas advertências por escrito.Mais uma e ele estaria suspenso das aulas por uns quinze dias no mínimo.Logo agora que o decisivo quarto bimestre se aproximava...Sonhávamos com a formatura, com a turma toda passando de ano, colando grau juntos...Ninguém poderia ficar para trás.Por isso nos esforçávamos uns pelos outros para que todos aprendessem.Quem entendia mais de certa matéria ensinava aos que não entediam e vice-versa.O importante era que todos passássemos.
Por conta desse propósito, conversamos com nosso colega para que evitasse mais problemas na escola.Mesmo ele estando certo, procurasse não criar caso e evitar a suspensão.Ele não gostou muito de ter que baixar a cabeça estando inocente na situação, mas entendeu que o único prejudicado estava sendo ele mesmo e começou a se esforçar muito para não arranajar mais problemas.
Mas numa tarde tivemos dois tempos vagos seguidos e para passar o tempo fomos jogar vôlei na quadra.Por puro azar, nosso colega bateu um pouco mais forte na bola e ela foi direto em direção ao vidro da janela da cozinha.Não teve como evitar...o vidro espatifou-se!Foi uma gritaria e um tremendo core-corre no cômodo atingido!
Na mesma hora a diretora nos colocou em fila no pátio e perguntou quem foi que quebrou o vidro.
Ela era muito rígida e não iria dar refresco pro nosso colega.Ele seria suspenso.Mas foi sem querer!Ele não teve a intenção!Então decidimos ficar todos calados e ninguém entregou quem foi.Quando ela perguntava a algum de nós, respondíamos:
-Desculpe, Diretora, eu não vi.
Irritada, ela decidiu que ficaríamos alí, de pé no sol até aparecer o culpado.
Minutos depois já sentíamos as primeiras consequências do castigo...O sol esquentava nossas cabeças, suávamos,tínhamos sede.Mas mantínhamos nosso pacto de silêncio.
Mais alguns minutos e eu já sentia minhas pernas doerem.Todos sentiam.Mas o pacto de silêncio continuava.
A Diretora andava de uma lado para o outro.Imponente.De lá pra cá, daqui pra lá.Não se intimidava com nosso silêncio, nem demonstrava o menor sinal de que iria ceder...De lá pra cá, daqui pra lá, de lá pra cá, daqui pra lá...
De repente olho para uma colega na fila, quase ao meu lado.Ela era loura, muito branquinha e seu rosto já estava ruborizado pelo calor.Transpirava muito, seus olhinhos estavam caídos, mas estava segurando firme o castigo.Tive pena dela...semblantes similares se repetiam em outros rostos amigos...Foi me dando uma agonia...minhas pernas começavama ficar dormentes e num ímpeto gritei:
- Tudo bem Diretora!Fui eu!
Saí da fila e caminhei em sua direção.Ela me mediu com os olhos de cima a baixo.Continuei:
- Não tive a intenção de quebrar o vidro, mas fui eu quem acertei a bola.
Porém, antes que ela dissesse qualquer coisa, meu colega, o verdadeiro responsável pelo ocorrido saiu da fila dizendo:
- Não é verdade, senhora Diretora!Fui eu quem quebrou o vidro!
Falava ele ainda quando outro colega se apresentou:
- Também não é verdade Diretora!Quem quebrou o vidro fui eu!
Para minha surpresa, todos os colegas de classe foram se apresentando uma a um como culpados pelo vidro quebrado.
Ainda mais irritada e visivelmente irada a Diretora começou aos berros exigir que parássemos com aquilo e que o verdadeiro culpado ou culpados se apresentassem.
Não adiantou nada.Quanto mais ela berrava, mais culpados se apresentavam, deixando-a completamente confusa:
- Fui eu!
- Fui eu!
- Mentira, fui eu!
Por fim a monitora do ginásio, uma senhora mais velha e mais ponderada, se aproximou dela e a acalmou dizendo que éramos apenas crianças.Advertiu-a que o castigo que ela estava nos impondo era desumano e acabou por constrangê-la ao dizer que estávamos alí há quase duas horas dando uma lição de união e companheirismo da qual ela muitas vezes sentia falta no núcleo diretor adulto da escola.
Aborrecida, a Diretora nos dispensou advertindo que convocaria uma reunião de pais para falar sobre o prejúízo causado.
Já faz anos que isso aconteceu.
Hoje essa turma já está toda adulta, a maioria casada e ainda nos encontramos uma vez ao ano para um belo churrasco de confraternização.Nesses encontros falamos sobre tantas coisas, tantas lembranças, e no último encontro alguém lembrou desse episódio, relatando aos nossos filhos o quanto eu fui corajosa e o quanto a turma permaneceu unida até o fim.Mas eu na volta pra casa vim relembrado sozinha o fato e fiquei pensando comigo mesma, vale tudo para preservar amigos verdadeiros, mas olhando bem de um outro ângulo, em outro tempo, o que foi que eu fiz!
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