Quem vê, acha que é verdade. O local que escolhi parar viver é um muquifo, o prédio é arruinado e pelas portas de madeira maciça já passaram, segundo dizem, condessas, madames e cachorros vestidos de veludo e cetim. Os vitrais arrebentados pelos moleques que se criam às pencas nas esquinas eram povoados de santos e imagens barrocas, sabe-se lá tiradas de onde; davam um colorido especial às janelas do térreo cheias de samambaias vetustas e de teias de aranha. Ali proliferavam as madames casadas com barões do café e de traficantes de escravos brancos, que finados em melhores dias, tiveram o lugar de honra substituído por traficantes de pó branco e barões da vida fácil. Nada mau para um prédio dessa serventia!
Pois é lá onde moro; É lá que solto o primeiro vento da manhã, pelas janelas desguarnecidas como dentes velhos numa boca torta. Mia um gato ou é um rato que se faz passar por um, tal é a malemolência dos pequenos (!) roedores que convivem com outros dentuços. Lá onde moro pinga a gotinha da esperança mas sabe como é, nunca é bom beber dessa água que passarinho cheira de longe.Foi lá que conheci o meu tesouro, minha falsa loira de botequim, cabelos de raiz negra como o breu da noite e pontas de dourado metal que quando passeia por meu peito, me faz ir à nuvens ou me faz rir das cócegas nos pés. Fatal, tem dentro dela um vulcão que traz a perdição de meu juízo, olhe só. Não é só isto: Sabe discutir bem o futebol, pois manda a cangalha que mulher que é mulher mesmo não fala, escuta e se possível, na frente de um fogão. Santa Inquisição se você assim definir seu terreno: De Torquemada a outra, sobrarão ossos inúteis que ela incinerará.
--Pois sim! Não sou escrava, nasci livre, já assim dizia minha mãe que me criou; uma santinha!
Sim, era livre minha amada, solta das amarras e desprendida de todo e qualquer pudor de classe média-baixa. Convidava as amigas para tomarem cafés e se sabia de longe que havia um encontro de livres-pensadoras pelas gargalhadas com que comentavam as peripécias mais escandalosas, nos detalhes mais íntimos e era isto que me encantava: era seu jeito depravado que fazia as cabeças de toda uma geração de admiradores.
--Larga do meu pé!
Ela falava assim mas quanto mais ela dizia, mais eu me aproximava, tanto mais ela fugia e eu, pelo meu lado, mais resistia a deixá-la sem mim.Foi assim o tempo todo, enquanto ela existia em sua vida de purpurina, de bailarina das esquinas, ou flutuando num transe hipnótico.Eu, de basófia, ria de sua cara. Era o bastante para ouvir as palavras:
--Filho da puta!
Pois é, lá onde moro as esquinas são escuras e as guimbas de cigarro entopem as bocas de lobo que deságuam nos oleosos rios do Centro, onde sofás flutuam abrigando sereias imaginárias em seu rumo de volta ao mar que as originou. Invisíveis, vão sentadas em finos tecidos rasgados e só descobrem que estão em outras paragens quando se aproxima a enxurrada de lixo plástico. Voam como garças feridas, minhas valorosas cantoras, assim como canta minha admirada fada que assoa o nariz de modo canhestro, pérola entre porcos.
--Sou assim mesmo! Gosta?
Para mim, minha falsa blondie é feita de puro veludo, suas ancas são o motivo de muitas desgraças. Haja peito para enfrentar suas estradas curvilíneas, aventura que termina sempre, ou quase invariavelmente, com um cigarro de marca chinfrim que afugenta os mais cautelosos: Se a moça fuma assim, o que será depois de mim? Ela é desse jeito, foi construída para mim que a desconstruo em pensamento e revejo suas falhas de caráter recompensadas por um maravilhoso dom impublicável.
--Se gosta, é bom que me encha de presentes!
Finas bijuterias, de falsa prata; anéis com falsas turquesas e esmeraldas de plástico que ela compra numa tal de vintecinco, número mágico que ela aposta nas loterias de fim de tarde.
--Aposto sempre na borboleta, só dá veado na cabeça!
Gargalhando, faz os trejeitos alegres de um ou outro que conhece, diz que são suas melhores amigas e conta o caso do milionário que pedia para que ela fosse mais homem!
--Imagina! Eu, mais homem! Era o que faltava!
Essa é minha mulher descabida. Vale a caixa de Pandora, vale o quanto pesa (bem apessoada), não sei qual a religião que ela preza, nunca caiu num camburão por acordos tácitos na calada, é assim que ela me despreza de noite quando passo por ela a sentir o perfume escapar de seu corpo bem aparado, esculpido pelos cinzéis de antigos artistas.
--Grega, eu? Era o que faltava!
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