REFLEXÕES AO ENTARDECER |
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Eduardo Prearo |
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Não salvei o texto que estava escrevendo há pouco. Perdi-o. Dizia algo sobre as reações das mulheres com quem discuto no trabalho: furiosas, saem em busca de ajuda, talvez a fim de que eu me sinta ainda mais transgressor. Fujo, não sou herói. Quem crê que errei sugere que eu reflita sobre o erro. Foi uma pena ter perdido mais um emprego, alguém me disse. Desta vez as testemunhas eram mais de três, mas mesmo assim neguei que tenha gritado. Não me lembro. Fugir talvez tenha sido um erro, covardia. Lembro-me de que voltei andando até o centro, pois não tinha dinheiro para o ônibus. Tenho um certo estigma que fazem os homens fungarem. Sentei-me num ponto de táxi, um ponto escuro; morseguei a embalagem de uma bala de hortelã e fiquei ali durante um bom tempo. Até que um homem sentou-se ao meu lado e me perguntou algo, acho que era meu nome. Eu sussurrei com algum esforço um que me veio à mente: Heatcliff. Palrar com alguém estava fora de cogitação, e me parecia que ultimamente as pessoas palravam muito sobre coisas que eu deixara de palrar há tempos. Não vou mais, por enquanto, poder ingerir fibras solúveis, frutooligossacarídeos; vou ficar com a margarina, pensei. E olhe lá, pensei. Não queria pensar no quanto não era guerreiro, no quanto a fuga trouxera-me de novo a sensação de ser vagabundo. Tentei, em vão, olhar para a cara do homem sentado ao meu lado. Anjo ele não pode ser, pensei. Anjos talvez não gostem de pessoas ruins. Aquele homem era azul. Tirei da bolsa um caderno de anotações e um lápis Albrecht Dürer e desenhei um triângulo mais ou menos equilátero. Fiquei preenchendo-o, e senti uma lágrima indo até o queixo. Sentia um dó estranho, mas não de mim, de alguém, apenas. Mergulhado no mar das tristezas, eu, num passado não muito distante, amiúde me pegava traçando triângulos com o indicador no ar; talvez fosse uma espécie de mudra. "Belo desenho", interrompeu-me o homem. "Por não vai embora?" "Por que não desabafa comigo, Heatcliff?" "Isso não existe. Você chega aqui, sem me achar suspeito, o que seria mais correto no mundo de hoje, e agora quer que eu desabafe? Mas vou falar o quê? Tenho medo de ficar aqui com outra pessoa. Se fosse sozinho seria menos suspeito. Podem achar que estamos arquitetando um assalto. Não estou me sentindo perseguido só nesse sentido. Acho que querem me enlouquecer de vez. Quem? Gente desconhecida, que invoca a miséria nos sussurros que tenho certeza que são para mim. O coletivo capta minhas dúvidas, não sei como nem por quê, nem se é para me desviar de algo." "Pode me dar um exemplo?" "Sim. Ontem uma conhecida quis comprar um xarope para mim, um daqueles fitoterápicos. Todos continham mel, a não ser um, o da herbario (sic). Ela insistiu para que eu levasse um que tivesse mais componentes na fórmula porque o do herbario só tinha um. Acabei levando um com mel." "Sim, o mel é uma dádiva, é um alimento e tanto." "Tem certeza? Se o mel não fosse consumido pelo homem que outra utilidade teria; para a Natureza, digamos?" "Continue." "Nesse exemplo, depois de ter aceito o xarope de bom grado, hoje de tarde ouvi alguém sussurrar herbario, herbario. É só isso. Sei que não é um exemplo muito convincente sobre perseguição. Ah, de um a dez meu intelecto está um. Agora eu vou embora." "A gente podia se encontrar amanhã, lá pelas cinco, no Ibirapuera." "Mas o parque é tão grande. Onde exatamente?" "No MAM, às dezesseis." "Combinado. Tchau." No texto perdido, pus que fui até o parque no dia seguinte. E realmente fui. Cheguei atrasado ao encontro, dezesseis e trinta, mas ele estava lá, o homem azul, parado, em pé, fumando um cigarro. Heatcliff! Heatcliff!, ele bradou quando me viu. Me pareceu que sorriu, mas eu ainda não estava preparado para olhar para a cara dele; olhava só para o corpo, para os sapatos da moda, de bicos longos, finos e quadrados. Ficamos caminhando bem devagar, conversando sobre diversos assuntos, divagando... "Eu errei, eu sei que errei, meu caro...qual é mesmo seu nome?" "John. Sou filho de Elizabeth Costello." "Ela está no Brasil?" "Sim, veio receber um prêmio. Eu falei do senhor a ela. Falei que o encontrei no ponto de táxi, meio abatido." "Você me chama de senhor por respeito, por que tenho medos ou por que me acha velho?" "Ela me disse que quer conhecê-lo." "Não entendo por que ela quer me conhecer." "Ela me disse que o senhor seria uma personagem interessante para um próximo livro dela." "Você não tem mulher e filhos, John?" "Tenho, mas me divorciei há pouco. Talvez eu vá vir montar minha cabana aqui, no Brasil. Heatcliff, o senhor não imagina como gostei de conhecê-lo." No texto original, escrito com mais paciência, John me levou para conhecer sua mãe, mas agora não estou com vontade de escrever o que aconteceu no encontro com a grande escritora australiana. Não sei o porquê deles terem me visto como alguém quando descobre uma pérola. Não valho muita coisa, ou talvez nada. |
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