CALABOCA |
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Beto Muniz |
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(com algumas pérolas de Luís Valise) Com uma gargalhada tonitruante o homem na calçada oposta me chamou a atenção. Cara de escorpião abandonado pela mãe. Sua alegria medonha vinha de chutar os fundilhos do engraxate, menino de uns nove ou dez anos. A sua volta todos esboçaram sorrisos amarelos, menos o menino, que tratou de sair logo do alcance do sapato que tentou, ainda, uma bicuda por saideira. Magriço, caixa encaixada no ombro, calções demais para bundas de menos, chinelas gastas, jeito suave — pássaro conformado com a existência da gaiola, parou. Alguns passos fora de perigo, o engraxate se aventurou olhar para trás, com os olhos de lamparina acesa mediu seu agressor. Não era mais o alvo da atenção do grandalhão, então voltou sobre os rastros de fuga. A intenção era passar pelo bar desapercebido e alcançar a esquina. Não logrou êxito. O sapato escapou súbito do apoio rente ao balcão e procurou novamente os fundilhos rotos do engraxate, que saltou centímetros adiante, e acima, tentando amenizar o impacto. Bateu as chinelas no mosaico da calçada ao mesmo tempo em que as lágrimas apagaram os olhos de lamparina. Na soleira do bar o retorno da gargalhada coincidiu com a meia dúzia de risos amarelos se acendendo. Então eu meti minha colher de pau no assunto alheio. Suicida incompetente em busca de um assassino. Cruzei a ruela e enfiei meia mão gargalhada adentro. Meus dedos da direita rasgados até os ossos no encontro com dentes, gengiva e ouro... Eu falei que o bruto tinha um dente de ouro? Tinha. Os sorrisos amarelos se apagaram. Fiz pose de gato quebrando gaiolas e ninguém tirou a bunda da banqueta. Decerto também fossem passarinhos. Apontei o ouro no chão, mão sangrando, mandei o menino pegar e alcançar a esquina. Dois palitos! As chinelas estalaram batendo nos calcanhares. Magriço, caixa pendurada na mão esquerda, a outra mão fechando dente e cós do calção, corpo penso, sumiu sem nem me agradecer. Pode ser que ria. |
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