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CASA DO SOL POENTE
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Sharon
Ratis
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Essa história aconteceu há muitos anos, meados dos anos setenta, para ser mais exata. É a história de dois jovens. Melhor dizendo, a história de um jovem e de uma menina. A menina se chamava Fernanda. Na época, com uns quinze anos. Tinha os olhos castanhos, grandes e expressivos. A Fernanda era só olhos. Cabelo liso, castanho, comprido. Sardas no rosto. Mas o que chamava a atenção mesmo eram seus olhos. O jovem, já não tão jovem, passava um pouco dos trinta anos. Ele se chamava Caio. Caio era muito: muito alto, muito magro, muito orelhudo, muito branco, muito peludo. Ambos freqüentavam a casa de Heloísa, a Lolô, uma professora que beirava os quarenta anos. Nascida e criada em cidade grande, Lolô leu uma vez que, para entender a sociedade, era preciso se afastar dela. Aí surgiu a casa do sol poente: uma chácara que Lolô comprou para criar galinhas e viver longe de tudo e todos. Bem, essa era a razão oficial. A razão verdadeira é que, depois de ter sido torturada, Lolô comprou essa chácara no meio do nada para se esconder e esconder os amigos da repressão política. Foi neste ambiente que Fernanda e Caio se conheceram. Lolô tinha sido professora de História da Fernanda, na sétima série. Fernanda era uma burguesinha rebelde que ganhara, de presente de quinze anos, uma viagem à Europa, desde que, na volta, concordasse em terminar seus estudos no Internato Nossa Senhora da Conceição. Caio, igualmente burguês, já havia sido detido pichando muros e distribuindo panfletos anarquistas, mas como era filho de gente influente, só passou uma noite na cadeia. Eles tinham muita coisa em comum: ambos se achavam extremamente feios, eram tímidos, quase não tinham amigos, estavam fugindo - ela, do internato, ele, do sanatório - e gostavam de meninos. Corria à boca pequena que Lolô e Caio tinham tido um breve romance. E que Lolô não admitia que nenhuma mulher se aproximasse muito dele. Bebia e dava vexames, espantando, assim, qualquer pretendente. Já dos meninos, ela não tinha ciúme. Uma negação sem sentido. Era fim de verão quando eles se conheceram. Fazia muito calor, ainda mais numa cidadezinha do interior paulista. Fernanda chegou primeiro, numa quarta-feira, pela manhã. Pulara o muro do internato no início da madrugada e dormira na rodoviária à espera do ônibus que a levaria à cidade que Lolô morava. O resto do caminho, ela fez a pé. Usava a blusa do internato com as calças do pijama. Caiu conseguira se vestir antes da fuga do sanatório. Chegou à chácara na sexta-feira seguinte, no início da noite. Usava uma camiseta branca, calças jeans e uma sandália de dedo. O pouco que possuía, trazia numa mochila surrada. As pessoas não vinham visitar Lolô, elas vinham passar temporadas. Podia ser um dia ou seis meses. Quando Caio chegou, Fernanda vestia uma saia de Lolô. Caio reconheceu. Ficara muito grande na menina. As duas estavam no terraço da casa. Lolô, no balanço, Fernanda, na almofada. Sorriram um para o outro, timidamente. Lolô e Caio se cumprimentaram com um ligeiro beijo nos lábios. Eles entraram. Logo depois, Lolô voltou para o terraço, sem dar muitas explicações. Ela só veria Caio no dia seguinte. O dia tinha se passado muito abafado. Céu nublado, cheiro de mato, mas nem sinal de chuva. No fim da tarde, Lolô e Fernanda se sentaram no terraço para ver o por-do-sol. Fernanda sentia os cabelos úmidos de suor. Lolô trazia a nuca livre, cabelos cortados à chanel. Tomavam vinho, em silêcio. Já era alta noite quando Caio se juntou a elas. Usava a mesma roupa do dia anterior. Trazia uma garrafa de uísque barato. Sentou-se no chão. Fora a fraca lâmpada do terraço, a única luz que havia vinha das estrelas. Só o barulho dos grilos interrompia o silêncio que Caio quebrou contando como fora parar no sanatório. Ele tentara pular de uma janela do quinto andar. Sua mãe entrara no quarto na hora exata: você vai fazer isso comigo, meu filho ? Envergonhado, Caio passou a perna pendurada para o lado de dentro da janela. Se ele morasse numa casa, teria subido para o telhado, igual a Daniel. Mas Daniel só apareceria anos depois. Ele e Caio não chegariam a se conhecer, mas ambos foram parar no sanatório e trouxeram nas têmporas as marcas do eletrochoque por muitos anos. Já passava das duas ou três da manhã quando Lolô foi dormir. A chuva, que ameaçara cair o dia todo, agora parecia querer lavar os pecados da humanidade. A garrafa de uísque já estava quase no fim. Caio se sentou ao lado de Fernanda. Olhavam-se tímidos e falavam pouco. Quando Caio foi lhe fazer um agrado acendendo o cigarro dela, seus joelhos se tocaram. O dela, dengoso, o dele, assustado. Levantaram os olhos e se viram pela primeira vez. Suas bocas se tocaram ásperas e aconchegantes. Seus corpos se entenderam como se existissem só para satisfazer um ao outro cheios de dengos e agrados. No outro dia, não trocaram um olhar durante o café. Fernanda acabou voltando para a casa dos pais. Muito tempo tempo depois, ela soube que Caio havia se mudado para o exterior e que morava com um português. Depois ela não soube de mais nada por muito tempo. Ela só veio ter notícias dele quando se encontrou com Lolô na passeata pelas eleições diretas. Lolô, magra e amarela, perguntou: - Você não soube? Ele morreu de AIDS há menos de dois meses. |
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