UMA
TARDE DE OUTONO
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Maria
Luísa Rocha
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Olhou a folhinha pendurada no azulejo branco da cozinha: 29 de abril de 2009, quarta-feira. O telefone tocou. Reparou que já eram oito horas. Atendeu com voz de sono, quase não falou, mas o encontro ficou combinado para as quatro e meia da tarde. Tomou café para acordar e tratou de iniciar os preparativos para que tudo acontecesse como prometera a si mesma. Prendeu os cabelos dentro de uma touca de pano já relaxada, abriu duas latas de leite condensado, colocou o conteúdo dentro do liquidificador, acrescentando leite e ovos. Os pudins foram para o forno em duas formas carameladas. Uma hora depois, já estava com a sobremesa esfriando na pia, pronta para ir à geladeira. Neste tempo, adiantou o almoço da família, enfatizando o pernil picadinho, temperado de véspera com esmero e pimenta brava. Animada, preparou uma receita de pizza coberta com molho de atum e bastante tomate em rodelas. Foi colocada em cima do armário mais alto assim que ficou assada, bem protegida de investidas impertinentes. Os filhos estranharam aquela movimentação atípica no meio da semana, principalmente no dia de compras de sacolão. Luísa, então, revelou tudo, um sorriso iluminando o rosto avermelhado: seu tio Bebeto iria visitá-la à tardinha para conversarem. Seria uma tertúlia, explicou com certa importância. Acrescentou que ele queria aproveitar a oportunidade, já que tinha que buscar o neto João Pedro bem perto dali. O menino estava freqüentando aulas de teatro às quartas-feiras e, como os pais estavam no trabalho, o avô decidiu ir buscá-lo. Por isso, telefonou cedinho, dizendo que poderia matar dois coelhos com uma cajadada só: pegaria o menino e faria uma visita bem na hora do café da tarde. Pontualmente, tio Bebeto chegou com o neto e logo trataram de se sentar ao redor da mesa da cozinha. Luísa não era muito caprichosa para dispor a louça , mas o cheiro dos comestíveis compensava este defeito. Quando acabaram de tomar os primeiros goles do café, tocou o interfone. Era tia Madalena que fora avisada do encontro e fez questão de aparecer. Que alegria! Ela subiu os quatro lances de escada como se fosse uma menininha, toda penteada e cheirosa, trazendo um presentinho que muito comoveu a sobrinha: era uma pequena imagem de Nossa Senhora das Graças, em acrílico transparente, sobre um nicho de pedrinhas coloridas. Como ninguém era de ferro, trataram de se esbaldar com o lanche preparado com tanto carinho: café, pãezinhos quentes com pernil, pizza de atum, guaraná, queijo e, para coroar, os pudins já acomodados nas travessas, deitados em um esplêndido berço de calda de açúcar queimado. Comeram tudo, repetindo o máximo que aguentaram. Estava tudo delicioso! No final, uma surpresa. Luísa foi até o fogão e trouxe duas cumbuquinhas cheias de canjiquinha saindo fumaça de tão quente. Finalmente, começaram a conversa propriamente dita. Falaram do lançamento do livro da Madá que iria acontecer no mês de junho. O livro tem mais de 300 páginas, muitas fotos, e relatava os casos de sua vida como professora, diretora de grupo, mãe, irmã e tia. Ela nos contou que, à medida que ia escrevendo, sua memória a surpreendia agradavelmente, tal a clareza e precisão com que os fatos surgiam. Tio
Bebeto começou a ficar meio aflito com a conversa do livro, pois
o tempo estava passando e ele precisava colocar uma questão que
o estava afligindo há meses. Luísa
e a tia, assustadas com a cena, interromperam a conversa para ele pudesse
contar seu problema. Ele começou explicando que agora, aos setenta
e quatro anos, descobriu que era um descrente de religiões e filosofias
pós-morte. Havia chegado à conclusão que ou tudo
se finalizaria e viraríamos pó ou algo muito surpreendente,
inenarrável iria surgir ante nossos olhos no além. Acontece que, há dois meses atrás, Míriam , mulher do tio Bebeto, foi operada e ele, muito preocupado, acabou pedindo proteção a São José. Prometeu ao santo que iria visitá-lo no dia primeiro de maio, na igreja São José , em uma pequena cidade em Minas Gerais, onde era o padroeiro. Ficamos sabendo que São José era reverenciado em duas datas: 16 de março e primeiro de maio. Por ser o dia do trabalho e São José ser considerado o santo operário, foi acrescentada a segunda data para mais uma homenagem. Coisas do comunismo europeu, explicou o tio com certo desdém. A irmã Madalena rebateu este argumento com firmeza. Nada disto. Como São José era um carpinteiro, um trabalhador honesto, nada mais justo ser lembrado no dia do trabalho. Voltando à promessa, tio Bebeto encontrava-se agora em uma situação de aperto: estava à véspera do feriado e não conseguiu ninguém que o levasse à cidadezinha na data prometida. A irmã retrucou, criticando sua indolência. Deveria ir de qualquer jeito, em último caso, poderia contratar um táxi. Tio Bebeto explicou que seria muito caro. Novamente Tia Madá calou-o, argumentando que ele estava muito bem de finanças. A discussão teve que ser encerrada porque era hora de ir embora. Os pais de João Pedro já deviam estar à espera do menino na casa do avô. Esbaforido, tio Bebeto ainda conseguiu contar mais um caso. Todas as manhãs, bem cedinho, ele faz caminhada de uma hora em um parque perto de sua casa. Por várias vezes, viu duas mulheres sentadas bem próximas falando baixinho. Cismou que elas deveriam estar tendo um caso e que se encontravam ali para ficarem mais à vontade. Resolveu cumprimentá-las, mas elas nem o perceberam. Até que, curioso como nunca, fingiu que precisava amarrar o cadarço do tênis e ficou escutando a conversa delas. A surpresa foi enorme: elas estavam simplesmente rezando o terço, aves-marias e pais-nossos, bem ritmadas, cheias de fé. Muito sem graça e envergonhado, tratou de mudar o trajeto das caminhadas. Luísa desceu até a rua acompanhando os tios. Ficaram perplexos com o trânsito já tão enlouquecido. Também pudera, já passava das seis horas. Combinaram de se encontrar mais vezes, em outras quartas-feiras. Luísa prometeu mais agrados, comestíveis e muita conversa. Colocou-os em um táxi, acenou e voltou devagarinho, já com saudades ... Olhou para cima e no céu quase escuro viu uma deslumbrante lua crescente. Subiu as escadas, entrou na cozinha para ajeitar a louça suja que iria arrumar no outro dia. Dirigiu-se para a sala, guardou a imagem de Nossa Senhora das Graças junto com a de Nossa Senhora de Guadalupe, na prateleira da estante de livros onde fizera uma espécie de altar. Ligou a televisão, suspirou profundamente e preparou-se para assistir sua novela preferida.
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