Descrição
dos personagens:
P1: (psicológica) felicidade: oscila entre euforia/loucura e melancolia
e depressão. Caráter psicológico de um louco.
(caracterização): alto e magro, com a pele muito branca
e os olhos avermelhados com contorno preto. Aparentes transtornos mentais.
Se expressa bastante com o corpo e caminha sempre com ar de desconfiança.
Inquieta, olha muito no olho o interlocutor, e sai de sua presença
com olhar fixo nele. Quando está melancólica, olha para
o chão e para os lados falando em tom baixo, mas convincentemente.
Quando fala, o que diz não deixa dúvida.
P2-
no começo usa de voz arrogante e desinteressada. Depois, vai se
comprometendo com a narrativa de p1.
Sinopse:
É um espaço em que pessoas são somente referências
de diálogo. O que existe é a felicidade, um forasteiro e
um diálogo, num cenário desconhecido. Um tempo em que não
existe o cronômetro dos dias, somente as sensações,
reflexões e mágoas de uma felicidade pobre e entristecida,
à beira da loucura. A felicidade não sabe o que encontrará
mais adiante. Então encontra alguém sentado e, compulsivamente,
passa a dividir suas loucuras, suas experiências, seu passado. De
inicio desinteressado, seu interlocutor passa a questionar suas histórias
e entra no diálogo forçando a felicidade revelar as suas
opiniões e sentimentos em relação ao amor. Alegando
sempre a iminência da partida, a felicidade tenta, por diversas
vezes, fugir do interrogatório, mas acaba por confessar a sua verdadeira
relação com o amor. O diálogo é complexo,
as mágoas são crônicas, e tudo culmina na descoberta
do que existe entre um amor e a felicidade!
CENA
I
P1- Existe uma briga! Existe uma briga! Uma briga de reis, senhor, uma
briga de reis! Não diga aonde é! Peça-me, me peça
aonde é! Sou eu quem vê; sou eu que a vejo. A briga, a briga
de reis. E é por ali, senhor; a briga de reis é por ali,
naquela direção!
P2- Não temos reis!
P1- De violões. É uma briga de violões, senhor. Então
é isso. Isso, isso, é uma briga de violões. São
dois, são dois os violões que brigam. Mas a direção
está certa, é por ali, senhor; é por ali.
P2- sendo eu surdo, existe briga?
P1- é briga entre o verde e o amarelo, senhor. Entre o verde e
o amarelo. É briga feia. Vá pela beirada da direita, senhor.
A briga é feia. (pausa) Agora é tudo verde. Espere! Sim,
sim, tudo ainda está como na oliva. (pausa). Agora amarelo, tudo
está amarelo. Por ali, senhor, por ali. A direção
é certa, por ali. (sempre apontando com a mão).
P2- para o cego essa briga não existe.
P1- não importa, senhor, a cegueira. A briga é de foices.
Acertam o cego também. Que seja cego. No meio do cego, no meio
do cego. E do surdo e do mudo. Pior, no meio dos que vêem, que ouvem
e falam. Mais no meio deles. Foices, foices. (euforia).(pausa/quieto).
Olhe os cortes, senhor: são feios. O gume é decerto afiadíssimo.
Medo. Tenha medo, senhor. São feios. Os cortes, eles são
feios e fundos.
P2- sou um temerário.
P1- dos cortes mais fundos?
P2- dos cortes mais fundos!!
P1- (pausa e caminha quieto e pensativo para o lado oposto. Retorna aos
berros:). Acuda senhor, acuda! É briga de criancinhas. Pequenas
criancinhas: gordinhas e rosadas. (com tom de inocência). Senhor,
corra, que, pelos gritos, é por ali. (diante do estado de choque
de p2) senhor, senhor...senhor (ele olha). Por ali, ó. Ali.
P2- senil...senil...você é senil. Eu sou senil.
P1- o senhor? Senil? (pausa). Corra senhor, aproveite a briga que há
ali na direita. É das boas. É briga de bengalas. Duas bengalas
e elas brigam. Estão afoitas, estão irritadas. Bengalas,
senhor. Bengalas. É por ali, já lhe disse o caminho, é
mais pela direita!
P2- que direita?
P1- perto da esquerda, senhor. Acho eu é muito perto mesmo da esquerda.
Junto dela, na verdade. (pausa) sim...é a esquerda mesma. Aproveite
a boa direção: vá então pela esquerda. É
lá que brigam as suas bengalas. Posso chamá-las de suas,
não é?
P2- e onde fica o teu sacrifício?
P1- então corra! Corra depressa, senhor. Chegará, então,
a tempo para o holocausto. Naquela direção. Esquerda.
P2- como te chamas? insistência?
P1- felicidade, senhor!
P2- então já te vais? (entende como uma despedida)
P1- felicidade. Assim é como me chamam. Quanto a briga, terá
ela...(interrompido)
P2- és feliz?
P1- Não senhor. Não sou o ser feliz, sou a felicidade. Te
parece que a felicidade deve ser feliz?
P2- não te parece?
P1- não me disseram isso. Disseram-me: vá e apareça
de vez em quando. Lembre-se: muito raramente. E disseram-me mais: nunca
troque de roupa com o amor! Eis o importante. Nunca!
P2- como assim?
P1- eu e o amor somos coisas diferentes, como reis e bengalas. Eu sou
a felicidade. O amor não é a felicidade, é o amor.
(pausa olhando para os lados) logo preciso ir. Muito raramente, lembra?
P2- mas e a felicidade não é feliz?
P1- senhor, ainda estão brigando ali. Ali é que...(interrompido)
P2- e porque não és o amor?
P1- porque eu sou a felicidade.
P2- não concebo essa distinção!
P1- eu, senhor, sou alto e magro. A amor é baixo e gordo e, então,
reconheço-o quando vejo passar. Eu, esse esquelético, não
sou o amor. Eu sou a felicidade.
(cantando:) a felicidade eu sou, aquela, aquela, que vem e que vou, eu
sou a felicidade, não não não sou o amor...
A felicidade!
P2- que não é feliz? (tom de deboche)
P1- eu sou a felicidade!
P2- uma felicidade infeliz! (conclusivo)
P1- eu não sou infeliz!! Apenas não sou feliz. Mas eu tenho
mãe e pai; irmão e tia, jóias e carros, barcos e
velas e homens e mulheres. Eu não sou feliz nem infeliz: sou a
felicidade. (sai cantando) a felicidade eu sou, aquela, aquela, que vem
e que vou, eu sou a felicidade, não não não sou o
amor...(senta no chão em um canto)
P2- você sempre está aí?
P1- senhor!! Não. Não, senhor. (enfático) Já
lhe disse: estou muito raramente! Hoje venho, amanhã ainda fico,
depois vou embora e fico na cama até mais tarde. Muito raramente.
Um pouco. Outro de novo. E mais uma vez, e vez, e vez....
P2- e quem está aí quando você fica na cama até
mais tarde?
P1- senhor, existe uma briga. É de reis, eu insisto. E, sem engano,
é naquela direção. À esquerda. Perto da porta.
P2- e quando você não vem? Vem quem?
P1- ninguém, senhor. Vamos ver a briga?
P2- certo. Ha... e se você dorme, quem está aqui conosco?
P1- o amor. Se a felicidade adormece, o amor acorda!
CENA
II
(a felicidade entra cantando vestida de rei).
P1- eu sou um rei, sou o vencedor que brigou. Houve então, senhor,
a briga. Houve, houve. Sou rei e felicidade, e a felicidade eu sou, aquela,
aquela, que vem e que vou, eu sou a felicidade, não não
não sou o amor...
P2- felicidade ou rei?
P1- (espantado) Senhor!? Viste a briga? De fato era entre reis. Lembre-se,
o que a felicidade é no inicio é que é a sua verdade.
No inicio.
P2 - quando virá o amor?
P1- quando eu for embora! E é logo. Porque eu sempre tenho muito
sono. Por isso é que sempre vou embora logo. Então vem o
amor. Que é mau. O amor é mau. Ele é invejoso da
felicidade. Senhor, ele quer se igualar a mim! Enquanto durmo, veste minha
roupa e sai no meu lugar. Finge que é a felicidade!
P2 - não diga bobagem!
P1- senhor! Sim, é assim de fato. O amor chega no meio das pessoas
e grita: eu sou a tua felicidade. É a felicidade que bate às
vossas portas. (pausa). (BAIXINHO)Os incrédulos e inocentes abrem
logo esperançosos porque a felicidade chegou. Chegou nas suas vidas
tristes. E o amor entra disfarçado de felicidade. No começo,
ele finge perfeitamente bem. No começo, o amor é só
felicidade.
P2- ele não te imita! Apenas se parece com você!
P1- não senhor. O amor é mau, eu insisto. Eu não
sou mau...nem bom, porque existo nos carrascos, assassinos, mentirosos.
Eu sou apenas a felicidade. E o amor é só mau. Você
não acha que fingir ser bom quando chega não é uma
maldade?
P2- e como se sabe quando é amor e quando é a verdadeira
felicidade? Aliás, você chamaria o amor de felicidade falsa?
P1- o amor é a felicidade falsa! Mas não tem como saber
quem é quem. As pessoas não querem saber. Não tem
como saber. Enquanto eu dormir, não.
P2- e depois?
P1- depois, quando eu chego, mais de mansinho e serena, o amor vai se
tornando mais transparente, mas um transparente mais opaco. Longe. Até
que precisa sair do olho das pessoas.
P2- mas o amor não habita o coração?
P1- também, senhor. Também. Mas do coração
ele não sai assim tão depressa! O olho é mais fácil.
Quando ele sai, se vê que não era a felicidade. Mas como
ele continua no coração, por um tempo ainda, e mesmo depois
da pessoa saber como é o amor depois do inicio maravilhoso, a felicidade
não entra.
P2- o coração...cego. (CONSTATA)
P1- o coração não sabe das coisas. Ele só
sente as coisas. E também o amor não é cego. O amor
é a capacidade de cegar. E o amor faz morada nas pessoas, entende?
Capacidade de cegar...pessoas.
P2- então o amor queria ser você?
P1- não. O amor não quer ser a felicidade! Porque quando
eu saio de um olho, eu também saio o coração. O olhar
e o peito ficam órfãos, desabitados. Mas com o amor é
diferente. Ele quer ficar ali, latejando, à esquerda. Latejando
no coração.
P2- e ele fica mesmo. (AFIRMATIVO)
P1- sim...por isso alguns o chamam de 'o contraditório'. Porque
toda pessoa, quando o amor já não existe mais no olho, quer
que ele seja arrancado também o coração. Mas ele
fica ali, matando aos pouquinhos. Por isso ele não quer ser eu.
Ele quer continuar, mesmo a contragosto.
P2- mas então porque ele se disfarça de felicidade?
P1- para entrar no olho e no coração!
P2- então é por isso que você não acredita
que o amor seja de verdade?
P1- não é por isso. Não é, senhor!
P2- então?
P1- eu era A verdade...
P2- falo do amor ser verdadeiro, não de você....
P1- e eu falo o tempo em que essa distinção não existia.
O tempo em que a felicidade era feliz, porque era o amor. Mas daí
essa parte de mim começou a brincar de mudar depois que as coisas
começavam no coração os homens. Então o amor
passou a causar a impressão de felicidade só no começo,
e depois ficava latejando amargo no coração. E no decorrer
o amor nem era mais amor: era mágoa, tristeza, ódio, até.
Aí nos separamos.
P2- o amor com um fim infeliz?
P1- é, como é hoje o amor que fica no coração.
Ele é infeliz. Porque ele está separado de mim. Separado
da felicidade. Ele quer ter morada única. Não se pode viver
só com o amor. Porque a felicidade não é o amor.
P2- e você felicidade?
P1- eu preciso ir dormir. Porque eu passo mais depressa. E volto, e vou...
P2- embora. Mas já?
P1- é hora de os homens amarem. E eu e o amor ainda estamos brigados.
Brigamos ali. À esquerda. Naquela direção. Não
eram reis.
Boa
noite, senhor!
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