Tema 191 - DENGOS E AGRADOS
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BRIGA DE REIS
João Gilberto Engelmann

Descrição dos personagens:
P1: (psicológica) felicidade: oscila entre euforia/loucura e melancolia e depressão. Caráter psicológico de um louco.
(caracterização): alto e magro, com a pele muito branca e os olhos avermelhados com contorno preto. Aparentes transtornos mentais. Se expressa bastante com o corpo e caminha sempre com ar de desconfiança. Inquieta, olha muito no olho o interlocutor, e sai de sua presença com olhar fixo nele. Quando está melancólica, olha para o chão e para os lados falando em tom baixo, mas convincentemente. Quando fala, o que diz não deixa dúvida.

P2- no começo usa de voz arrogante e desinteressada. Depois, vai se comprometendo com a narrativa de p1.
Sinopse:
É um espaço em que pessoas são somente referências de diálogo. O que existe é a felicidade, um forasteiro e um diálogo, num cenário desconhecido. Um tempo em que não existe o cronômetro dos dias, somente as sensações, reflexões e mágoas de uma felicidade pobre e entristecida, à beira da loucura. A felicidade não sabe o que encontrará mais adiante. Então encontra alguém sentado e, compulsivamente, passa a dividir suas loucuras, suas experiências, seu passado. De inicio desinteressado, seu interlocutor passa a questionar suas histórias e entra no diálogo forçando a felicidade revelar as suas opiniões e sentimentos em relação ao amor. Alegando sempre a iminência da partida, a felicidade tenta, por diversas vezes, fugir do interrogatório, mas acaba por confessar a sua verdadeira relação com o amor. O diálogo é complexo, as mágoas são crônicas, e tudo culmina na descoberta do que existe entre um amor e a felicidade!

CENA I
P1- Existe uma briga! Existe uma briga! Uma briga de reis, senhor, uma briga de reis! Não diga aonde é! Peça-me, me peça aonde é! Sou eu quem vê; sou eu que a vejo. A briga, a briga de reis. E é por ali, senhor; a briga de reis é por ali, naquela direção!
P2- Não temos reis!
P1- De violões. É uma briga de violões, senhor. Então é isso. Isso, isso, é uma briga de violões. São dois, são dois os violões que brigam. Mas a direção está certa, é por ali, senhor; é por ali.
P2- sendo eu surdo, existe briga?
P1- é briga entre o verde e o amarelo, senhor. Entre o verde e o amarelo. É briga feia. Vá pela beirada da direita, senhor. A briga é feia. (pausa) Agora é tudo verde. Espere! Sim, sim, tudo ainda está como na oliva. (pausa). Agora amarelo, tudo está amarelo. Por ali, senhor, por ali. A direção é certa, por ali. (sempre apontando com a mão).
P2- para o cego essa briga não existe.
P1- não importa, senhor, a cegueira. A briga é de foices. Acertam o cego também. Que seja cego. No meio do cego, no meio do cego. E do surdo e do mudo. Pior, no meio dos que vêem, que ouvem e falam. Mais no meio deles. Foices, foices. (euforia).(pausa/quieto). Olhe os cortes, senhor: são feios. O gume é decerto afiadíssimo. Medo. Tenha medo, senhor. São feios. Os cortes, eles são feios e fundos.
P2- sou um temerário.
P1- dos cortes mais fundos?
P2- dos cortes mais fundos!!
P1- (pausa e caminha quieto e pensativo para o lado oposto. Retorna aos berros:). Acuda senhor, acuda! É briga de criancinhas. Pequenas criancinhas: gordinhas e rosadas. (com tom de inocência). Senhor, corra, que, pelos gritos, é por ali. (diante do estado de choque de p2) senhor, senhor...senhor (ele olha). Por ali, ó. Ali.
P2- senil...senil...você é senil. Eu sou senil.
P1- o senhor? Senil? (pausa). Corra senhor, aproveite a briga que há ali na direita. É das boas. É briga de bengalas. Duas bengalas e elas brigam. Estão afoitas, estão irritadas. Bengalas, senhor. Bengalas. É por ali, já lhe disse o caminho, é mais pela direita!
P2- que direita?
P1- perto da esquerda, senhor. Acho eu é muito perto mesmo da esquerda. Junto dela, na verdade. (pausa) sim...é a esquerda mesma. Aproveite a boa direção: vá então pela esquerda. É lá que brigam as suas bengalas. Posso chamá-las de suas, não é?
P2- e onde fica o teu sacrifício?
P1- então corra! Corra depressa, senhor. Chegará, então, a tempo para o holocausto. Naquela direção. Esquerda.
P2- como te chamas? insistência?
P1- felicidade, senhor!
P2- então já te vais? (entende como uma despedida)
P1- felicidade. Assim é como me chamam. Quanto a briga, terá ela...(interrompido)
P2- és feliz?
P1- Não senhor. Não sou o ser feliz, sou a felicidade. Te parece que a felicidade deve ser feliz?
P2- não te parece?
P1- não me disseram isso. Disseram-me: vá e apareça de vez em quando. Lembre-se: muito raramente. E disseram-me mais: nunca troque de roupa com o amor! Eis o importante. Nunca!
P2- como assim?
P1- eu e o amor somos coisas diferentes, como reis e bengalas. Eu sou a felicidade. O amor não é a felicidade, é o amor. (pausa olhando para os lados) logo preciso ir. Muito raramente, lembra?
P2- mas e a felicidade não é feliz?
P1- senhor, ainda estão brigando ali. Ali é que...(interrompido)
P2- e porque não és o amor?
P1- porque eu sou a felicidade.
P2- não concebo essa distinção!
P1- eu, senhor, sou alto e magro. A amor é baixo e gordo e, então, reconheço-o quando vejo passar. Eu, esse esquelético, não sou o amor. Eu sou a felicidade.
(cantando:) a felicidade eu sou, aquela, aquela, que vem e que vou, eu sou a felicidade, não não não sou o amor...
A felicidade!
P2- que não é feliz? (tom de deboche)
P1- eu sou a felicidade!
P2- uma felicidade infeliz! (conclusivo)
P1- eu não sou infeliz!! Apenas não sou feliz. Mas eu tenho mãe e pai; irmão e tia, jóias e carros, barcos e velas e homens e mulheres. Eu não sou feliz nem infeliz: sou a felicidade. (sai cantando) a felicidade eu sou, aquela, aquela, que vem e que vou, eu sou a felicidade, não não não sou o amor...(senta no chão em um canto)
P2- você sempre está aí?
P1- senhor!! Não. Não, senhor. (enfático) Já lhe disse: estou muito raramente! Hoje venho, amanhã ainda fico, depois vou embora e fico na cama até mais tarde. Muito raramente. Um pouco. Outro de novo. E mais uma vez, e vez, e vez....
P2- e quem está aí quando você fica na cama até mais tarde?
P1- senhor, existe uma briga. É de reis, eu insisto. E, sem engano, é naquela direção. À esquerda. Perto da porta.
P2- e quando você não vem? Vem quem?
P1- ninguém, senhor. Vamos ver a briga?
P2- certo. Ha... e se você dorme, quem está aqui conosco?
P1- o amor. Se a felicidade adormece, o amor acorda!

CENA II
(a felicidade entra cantando vestida de rei).
P1- eu sou um rei, sou o vencedor que brigou. Houve então, senhor, a briga. Houve, houve. Sou rei e felicidade, e a felicidade eu sou, aquela, aquela, que vem e que vou, eu sou a felicidade, não não não sou o amor...
P2- felicidade ou rei?
P1- (espantado) Senhor!? Viste a briga? De fato era entre reis. Lembre-se, o que a felicidade é no inicio é que é a sua verdade. No inicio.
P2 - quando virá o amor?
P1- quando eu for embora! E é logo. Porque eu sempre tenho muito sono. Por isso é que sempre vou embora logo. Então vem o amor. Que é mau. O amor é mau. Ele é invejoso da felicidade. Senhor, ele quer se igualar a mim! Enquanto durmo, veste minha roupa e sai no meu lugar. Finge que é a felicidade!
P2 - não diga bobagem!
P1- senhor! Sim, é assim de fato. O amor chega no meio das pessoas e grita: eu sou a tua felicidade. É a felicidade que bate às vossas portas. (pausa). (BAIXINHO)Os incrédulos e inocentes abrem logo esperançosos porque a felicidade chegou. Chegou nas suas vidas tristes. E o amor entra disfarçado de felicidade. No começo, ele finge perfeitamente bem. No começo, o amor é só felicidade.
P2- ele não te imita! Apenas se parece com você!
P1- não senhor. O amor é mau, eu insisto. Eu não sou mau...nem bom, porque existo nos carrascos, assassinos, mentirosos. Eu sou apenas a felicidade. E o amor é só mau. Você não acha que fingir ser bom quando chega não é uma maldade?
P2- e como se sabe quando é amor e quando é a verdadeira felicidade? Aliás, você chamaria o amor de felicidade falsa?
P1- o amor é a felicidade falsa! Mas não tem como saber quem é quem. As pessoas não querem saber. Não tem como saber. Enquanto eu dormir, não.
P2- e depois?
P1- depois, quando eu chego, mais de mansinho e serena, o amor vai se tornando mais transparente, mas um transparente mais opaco. Longe. Até que precisa sair do olho das pessoas.
P2- mas o amor não habita o coração?
P1- também, senhor. Também. Mas do coração ele não sai assim tão depressa! O olho é mais fácil. Quando ele sai, se vê que não era a felicidade. Mas como ele continua no coração, por um tempo ainda, e mesmo depois da pessoa saber como é o amor depois do inicio maravilhoso, a felicidade não entra.
P2- o coração...cego. (CONSTATA)
P1- o coração não sabe das coisas. Ele só sente as coisas. E também o amor não é cego. O amor é a capacidade de cegar. E o amor faz morada nas pessoas, entende? Capacidade de cegar...pessoas.
P2- então o amor queria ser você?
P1- não. O amor não quer ser a felicidade! Porque quando eu saio de um olho, eu também saio o coração. O olhar e o peito ficam órfãos, desabitados. Mas com o amor é diferente. Ele quer ficar ali, latejando, à esquerda. Latejando no coração.
P2- e ele fica mesmo. (AFIRMATIVO)
P1- sim...por isso alguns o chamam de 'o contraditório'. Porque toda pessoa, quando o amor já não existe mais no olho, quer que ele seja arrancado também o coração. Mas ele fica ali, matando aos pouquinhos. Por isso ele não quer ser eu. Ele quer continuar, mesmo a contragosto.
P2- mas então porque ele se disfarça de felicidade?
P1- para entrar no olho e no coração!
P2- então é por isso que você não acredita que o amor seja de verdade?
P1- não é por isso. Não é, senhor!
P2- então?
P1- eu era A verdade...
P2- falo do amor ser verdadeiro, não de você....
P1- e eu falo o tempo em que essa distinção não existia. O tempo em que a felicidade era feliz, porque era o amor. Mas daí essa parte de mim começou a brincar de mudar depois que as coisas começavam no coração os homens. Então o amor passou a causar a impressão de felicidade só no começo, e depois ficava latejando amargo no coração. E no decorrer o amor nem era mais amor: era mágoa, tristeza, ódio, até. Aí nos separamos.
P2- o amor com um fim infeliz?
P1- é, como é hoje o amor que fica no coração. Ele é infeliz. Porque ele está separado de mim. Separado da felicidade. Ele quer ter morada única. Não se pode viver só com o amor. Porque a felicidade não é o amor.
P2- e você felicidade?
P1- eu preciso ir dormir. Porque eu passo mais depressa. E volto, e vou...
P2- embora. Mas já?
P1- é hora de os homens amarem. E eu e o amor ainda estamos brigados. Brigamos ali. À esquerda. Naquela direção. Não eram reis.

Boa noite, senhor!

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