Tema 191 - DENGOS E AGRADOS
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NO APAGAR DA VELA
Eva Ibrahim

Sempre ouvimos dizer que nossa passagem pela vida terrena pode ser comparada com uma vela; quando nascemos á vela acende e a consumimos a cada dia. Muitas vezes ela titubeia e quase perde as forças, então, temos que recorrer á Deus e á medicina para mantê-la acesa. Com a chegada da velhice ela vai se apagando entre lágrimas de cera derretida, que se forma na base. Quando o final se aproxima o pavio dobra e fica queimando as tais lágrimas de sustentação.

Francisca, uma senhora de cabelos brancos e olhos azuis, com noventa anos de idade e já queimando seu pavio, chegou no domingo á tarde trazida pelo irmão e o sobrinho; ficaria morando na Casa de Repouso, onde eu era funcionária. O irmão já bem idoso não conteve a emoção; amava a irmã e por isso a trouxera para o abrigo. A velha senhora precisava receber cuidados necessários á sua saúde debilitada, explicaram os dois homens. A cunhada que cuidava dela havia falecido e os dois homens não sabiam o que fazer; era melhor assim.

Antonio deixou claro que não estava abandonando a irmã, voltaria para vê-la sempre que pudesse. A despedida foi triste, a anciã chorou e depois entrou com sua bolsa de crochê nas mãos. Foi conduzida ao quarto que dividiria com outra pessoa idosa; aquela seria sua nova vida. A casa grande e limpa acolheria a mulher até o apagar da vela; seria sua última morada.

A velha senhora não se casou, embora fosse bonita, prendada e de boa família. Não gostava de falar sobre o assunto, provavelmente algum amor platônico mal sucedido a levou á ficar solteira. Raramente saia de casa, passava o tempo fazendo crochê e cuidando da família. Tratava a cunhada como se fosse uma irmã; havia paz naquele lar. Nunca reclamou, pelo contrário, cuidou dos pais e o ajudou a criar o sobrinho, que tratava como filho; o irmão contou á enfermeira.

Francisca estivera muito doente e quando todos esperavam o pior ela se recuperou, em seguida a cunhada faleceu repentinamente deixando os três desolados. O sobrinho trabalhava o dia todo e não poderia deixar a tia, que estava convalescendo, aos cuidados do velho pai. Escolheram com muito carinho o lugar para onde a levariam; a Instituição era conhecida por dar assistência de qualidade aos clientes.

A semana passou devagar para a mulher, a enfermeira disse que a pegou chorando quando olhava a foto da família. Estava triste com o olhar perdido na porta de entrada, parecia esperar a chegada de alguém; era um pássaro fora do ninho. Não queria conversa, nem comida e também não abriu a bolsa de crochê, seu passatempo preferido.

A enfermeira teve muito trabalho para convencê-la a comer e tomar os remédios; dava pena ver a tristeza da mulher. Sua vida perdera o sentido, ficaria esperando o chamado divino, a anciã dizia chorando. Aos poucos foi aceitando os cuidados que lhe dedicavam e percebeu que aquele lugar era bom; poderia fazer amigos e passar o tempo como quisesse.

No sábado de manhã Francisca levantou alegre, com um largo sorriso dizendo que tivera um sonho com o irmão e que ele viria vê-la; queria ficar bonita. Tomou banho, vestiu sua melhor roupa e pediu para a enfermeira dar um jeito em seus cabelos. Com delicadeza a moça escovou e os arrumou em um coque atrás da cabeça, deixando seu rosto de bochechas vermelhas mais bonito. Estava contente, parecia ter um brilho no olhar até então, escondido.

Antonio, o irmão, no início da tarde desceu do ônibus e com passos lentos adentrou o portão. Francisca estava sentada na sala e levantou com um sorriso quando viu o homem entrar; estava certa, ele fora vê-la, deixando-a feliz. Antonio abraçou a irmã com carinho e foram para a varanda conversar; um queria saber do outro. A anciã e o irmão de mãos dadas lembravam o passado e entre agrados e dengos sorriam; ali estava o amor fraterno em sua essência mais pura. Á tarde o sobrinho foi ver a tia e buscar o pai prometendo novas visitas.

Depois da visita tão esperada a mulher abriu a bolsa para fazer seus trabalhos manuais, ficava horas fazendo crochê juntamente com outra hóspede. Estava aceitando a nova vida; passava os dias esperando a visita do irmão. Francisca fez toalhas para a mesa da casa e almofadas para o sofá; deixando o lugar mais bonito. A velha senhora era quieta e cordata, todos gostavam dela.

Com a chegada do inverno á mulher começou á tossir, era gripe forte, dizia. Embora medicada pelo médico, o quadro piorou tendo que ser internada no Hospital; estava com pneumonia. O irmão passava os dias lhe fazendo companhia. Depois de uma semana Francisca voltou á Instituição; estava muito enfraquecida. Antonio não tinha sossego, quando não podia vê-la, telefonava ansioso; tinha um mau pressentimento.No domingo, após o almoço, ele e o filho foram visitar a mulher. Entraram na casa e viram que ela estava sentada no sofá, certamente, esperando por eles.

Quando se aproximaram notaram que Francisca parecia dormir; Antonio chamou seu nome, mas não obteve resposta. O homem colocou a mão em seu ombro e percebeu que estava pálida e fria; sua irmã estava morta. Foi um alvoroço na casa, ela estava conversando ainda á pouco, diziam os funcionários. Sua vela apagou e ela se foi sem um gemido sequer, esperando o irmão querido. No atestado de óbito está escrito como causa da morte: "insuficiência cárdio-respiratória", isto é: a vela chegou ao fim.

Francisca se foi acompanhada do irmão, sobrinho, amigos e funcionários da Instituição, que a deixaram em sua última morada no Campo das Flores, onde nada mais é exigido ou cobrado. O velho irmão com seu corpo encurvado se aproximou da cova e jogou um galho de margaridas sobre seu caixão dizendo que logo irá ao seu encontro, sua vela já está queimando o pavio. Desolado, o homem seguia lento, amparado pelo filho que chorava a perda da tia.

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