Tema 191 - DENGOS E AGRADOS
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GUARDANAPOS
Eduardo Prearo

O computador está lento, e vagaroso também está o trânsito, pois mesmo os pedestres sofrem com ele. Sou sadio, mas os neurônios dimunuem a cada dia, também por causa dos "surtos", coisa que vinda de classes inferiores soa como folga, mimo, incapacidade, ou então, crime. Talvez soe como nada. Sentado a mesa, estou passando necessidade, pensei; mas quando fui olhar-me nu no espelho do banheiro achei-me gordo. Leslie também. Meu velho gordo, ela gritou. E feio, feio, feio, pensei. Quero ser outra pessoa; uma pessoa capaz de resolver os próprios problemas, mas não há favorecimentos nem voz nem vez. Nunca houve. Sinto falta dos dentes que perdi, e já tenho saudades dos que vou perder. Vivo no "não lugar" de qualquer grupo bom, e também talvez mal. Mas se para esses grupos há prosperidade, então continuo a achar unter(tan) todos os meus atos. Choveu muito semana passada. E na Xavier de Toledo, baratas resolveram sair dos bueiros, provocando gritarias, como as que fazem as moças quando veem celebridades belíssimas, daquelas que dispensam fotoshop. Leslie não precisa de fotoshop, é linda, quase ex-menina de rua. Adotei-a e até agora ninguém perguntou-me nada sobre ela. Muitos poucos falam comigo; mais mulheres; e se algum homem de classe fala comigo é por intermédio delas. Só se fala em crise, na atordoante crise (dizem que agora também será inserida nas novelas); só se fala nos vencedores top. Aliás, o mundo é mesmo deles? Após terem me dito que não sirvo para viver em sociedade, após constatar que sou da classe E, após me sentir um vagabundo, fraco, desanimei um pouco. Mas se queixar é coisa de gente mole, pensei. Acho que ninguém vai mais se interessar por um velho como eu a não ser Leslie, que faz massagens em mim quase todas as noites. Nos jornais o mundo é dos jovens, dos bem-sucedidos. E o que sou? Estou querendo ainda ser escritor, estou querendo ouvir que nunca é tarde? Sim, sempre há exceções nesse sentido. Não sou marroaz; sou sim um ignaro, não respondo com a palavra exata para me sentir bem depois; e se teimo em fazer as mesmas coisas que por sorte uma hora dão certo, é por não ter perspectivas, não saber o que seria bom para mim. Escrevo e me decepciono com o que escrevo, pois queria escrever bem. Mas leio pouco, estudo pouco. Quem sou eu para não gostar do que escrevo! Conforme vou escrevendo, percebo que vou perdendo a lucidez. Onde está o caderno, o caderno de anotações? Leslie! Leslie! Tire a mão daí e venha me ajudar. Anotei alguma coisa nele que achei que seria interessante colocar neste texto. Que perda de tempo! Encontrei. Anotei algo sobre apodrecer verde. E também: como hétero, um bofe repugnante; como homo, sempre não-top, rechaçado. De certa forma, acomodei-me. O sono está chegando, e com ele a lembrança de que já passei por situações piores, mas não a ponto de me desesperar como agora. Sem dúvida que a culpa é da andropausa. Leslie agora exige chupeta; isso a acalma. Sempre que pego algum livro para ler, vejo a idade do escritor. Se for de minha geração, não leio. Inveja? É verão. Esqueço-me de que bocejar em público sem pôr a mão na boca começa a pegar mal. Perdi os amigos, uma pena. Ninguém é amigo de ninguém. E os amigos só me corrigem. Sou a pessoa que nasceu para ser corrigida e nunca aprende. E no futuro verei que eles estavam certos; assim espero. Finjo-me de ator, e sempre acho que tem um ator observando como ajo. Eu seria um péssimo ator? Não sei, nunca tentei; acho que ainda é coisa para "adultos". Claro, na escola participei de peças, mas o público não me ouvia. Mais alto, bradavam, mais alto. Ser ator implica também em ser artista; e ser artista é bom, mas querer ser um, não, nunca me foi. Talvez eu me saísse bem na comédia. Não, não, nunca, nunca. Por que penso nessas coisas? É mesmo cruel ouvir um vai trabalhar seu vagabundo? Cheguei a essa idade sem ser nada. Na universidade também tive uma experiência com teatro, mas pirulitei no dia da apresentação; ou melhor, fiquei escondidinho (hum) no palco enquanto as pessoas do meu grupo faziam as encenações. E quem realmente esperava Godot era eu; eu me escondi esperando por ele, mas ele não apareceu. De qualquer forma a nota foi dez. Quando vejo essas pessoas importantes, que fazem da vida delas uma coisa luminosa, fico pasmo. Quanta energia, quanta paixão! Estou escrevendo sobre mim mesmo. Não é legal, mormente para quem quer ser escritor. Leslie adormeceu nuinha, não tem pudor. Nuinha, como ela mesma fala, esperando o cigarro que me culpo por lhe dar. Maldito, dizem; sim, é maldito, mas tapo os ouvidos. Alcalóides malditos! Preferem que eu fique quieto, talvez para não parecer pernóstico ou afeminado. Digo uns, mas para outros o fato de eu falar ou não, não resolve nada. O sono vem chegando com mais força. Os vizinhos riem quando choro alto. Não riam tanto, até que eu vivi! Não há nada entre eles e mim; nunca os conheci. Mas o rapaz que morava aqui, que era o amor da vida de quase todos, não só por ser gentil, conhecia cada vizinho, cada pessoazinha do bairro. Caso ele volte, não sei, acho que me tornarei mera figura decorativa, com muitos e muitas entrando, conversando, rindo, chorando, falando sobre a labuta, se entendendo perfeitamente ou brigando. E um vaso talvez sujo, diante de uma briga, pode ser atirado longe. Estou cansado do desânimo e da confusão, do não saber o que fazer. Acordo Leslie? Ligo o ventilador? Faço terapia, e é gratuita. Pensei até em levar um agrado para o terapeuta, mas esse negócio de agrado tem conotação sexual. Não para mim. E que agrado eu levaria para ele? Um bloquinho de notas? Talvez. Pedi emprestado um dinheiro, mas me disseram que eu não conseguiria pagar. Mesmo o padre me disse que não me daria nada porque as pessoas gostam de serem humilhadas, e querem sempre sentir uma certa austeridade nele. Fui seguido por dois rapazes de rua e escapei por pouco, e disseram que eles só pegam coitadinhos. A classe E é coitadinha? Não sei. Não sei também se há gente da classe A sem classe, se a classe A de repente nas mãos dos líderes da classe E não seria corrigida. Quem não gosta de um agrado? Bom, eu gosto, sou fraco para dizer não diante de algum presentinho. Mas preciso me reeducar, dizer: não, não quero seu agrado, seu dinheiro suado, só quero trabalhar, e me sentir bem como que faço. Não quero e não quero!

"O que você quer? Não tenho dinheiro. Sei que vou ouvir vai trabalhar vagabundo. Sou coitadinho como você!"

"Se você é coitadinho como eu, por que foge de mim?"

"Obrigado", respondi.

Sou caso de polícia. Hoje é outro dia; retomei os escritos. "Obrigado", respondi, foi a última coisa que escrevi ontem. E hoje estou com essa angústia. Será intuição? Se eu seguisse isso que chamo de intuição, talvez não temesse fazer o que queria fazer hoje e não fiz. Creio que pondere mal as alternativas, ou pondere tão bem que acabe ficando sem norte. Mas estou com medo. Cada vez que vou até lá (...) saio quase chorando e me sinto uma pessoa errada. O padre disse que essas pessoas que me dizem que ninguém tem o que não merece são crentes, e que Jesus não mereceu ser pregado à Cruz. Pode não ter merecido, mas é eterno, retruquei. E se ele dava sinais de que iria ser traído, morreria, sabia o tempo exato em que tudo aconteceria?, pensei. Agora mesmo enviei um torpedo para um número, para uma pessoa, claro, do qual não queria mais contato, pois como ela mesma disse não a convenço de forma alguma. Foi no automático. E essa amiga também seria capaz de me botar na cadeia. Pra ver como não sou muito consciente das coisas que faço: outro dia, saindo com ela, ela veio me dizer que quase derrubei uma garota. Não percebi, é claro. Ninguém julgaria mal alguém sem que essa pessoa soubesse; creio nisso. Hoje mudei um pouco a aparência e já senti os murmúrios com referência à sexualidade. Mocinha, bichinha, essas coisas. Sinto que me odeiam, mas a psicanálise diria que não; ou os promotores públicos, não sei. Estou inseguro. Por que me odiariam? Por quê? Agora me lembro de uma época em que eu também fazia terapia. Eu disse à terapeuta que pessoas desconhecidas me chamavam de Hitler, isso nas ruas. Ela não me disse que eu era louco, mas sugeriu que quando eu ouvisse isso de alguém, aproximasse-me dessa pessoa e perguntasse o porquê dela ter dito aquilo. Mas não deram certo as minhas tentativas. Algumas pessoas ficaram abismadas falando que não proferiram tal palavra, outras viraram as costas; enfim, nenhuma admitiu que tinha sussurrado a palavra Hitler. Ninguém jamais admitiria ter sussurrado indiretamente algo contra alguém? Não sei, mas na época eu achava que as pessoas gostavam tanto de mim, pessoas desconhecidas mesmo, que achavam que alguém estava sendo um Hitler para comigo. Achei algo em comum entre Hitler e mim analisando o meu mapa astral e o dele. Se ele tivesse sido um garçom ou um passador, deixa-lo-iam cruzar os braços por uns segundos sem criticarem? Agora vejo que Hitler talvez tenha tido muito mais cultura do que eu; pelo menos era mais bonito, e também muito mais importante. Tenho que aceitar o fato de que pôde ser tudo uma brincadeira, nada sério. Afinal, pegar pesado comigo não teria sentido, pois não incomodo, nem infelizmente me lembro de ter pedido pra nascer. Quando me percebo no ele-ela, ou seja, pessoas murmurando algo sobre a sexualidade, a minha, é claro, não tenho a quem recorrer. É tênue a linha que separa o macho do gay. As pessoas mais humildes não me acham gay. Mas o que é mais recorrente é a timidez, é acharem-me tímido. Timidinho ou timidíssimo. Mas se é assim por que me chamam de bicha louca quando no ele-ela? Sempre me incomodei quando alguém gostava de mim, e vinham me falar que eu é que estava gostando desse alguém, e perguntavam desde quando eu tinha esse sentimento. Gosto de tanta gente! Mas estão bravos comigo, portanto me acham bravo. Estranho, não? Não, mas agora nem bravo me acham, sou inexistente.

"Meu amigo, ela trabalha."

"Mas eu também trabalho. Ou não? Ah, você está querendo dizer que sou de baixa renda, de condição inferior?"

"Sim, ela tem carro, ela trabalha."

Estou mais calmo ainda agora. Não sei o que escrevi que me deixou ainda mais calmo. Talvez seja o valium (remédio chique, apesar de relativamente barato; o valium dos pobres, vai). Leslie murmurou algo, está sonhando. Não, não sou nervoso. A nervosidade se confunde com a insanidade. Quando levo Leslie para passear, perguntam se ela é minha filha. Não, é minha amante, digo. E riem, adoram piadas nojentas.

Ontem, a última palavra que escrevi foi insanidade. E hoje me disseram que sempre me apontarão como insano, e que por isso não conseguirei sobreviver. Escrevi uma sextina, mas acho que não tive muita sorte. Vejamos:

Há pulsações que não se tornam onda,
Quase ninguém para saber me amar.
Há cachoeiras de água azul-clara,
E o canto das sereias ao luar.
Há cidades mais belas, de mais paz,
Sem fome, sem atritos, num brilhar.

Rejeição que aparece pra brilhar,
Que faz soltar-me na brancura da onda,
E todas as pessoas são de paz.
Eu sei de um homem que bem sabe amar,
Clareia o escuro se não há luar,
De aura gigante, para lá de clara.

Os olhos dele são manhã bem clara,
Estrela fabulosa a brilhar.
Eu fico tão sozinho no luar,
E insisto em obliterar esta minha onda.
Ah se eu pudesse ter alguém pra amar,
Mas as palavras nunca são de paz.

As santas desta Terra são da paz,
E visto um paletó de listra clara,
E queria saber como me amar
Diante dessas rejeições brilhar,
Que surgem de repente tal qual onda,
Que me tornam horrível ao luar.

Me isolo pra não ver nem o luar,
E sou bem fraco em relações de paz,
Fico chorando no interior de uma onda.
Essa situação pra mim é clara,
Não há nada pra fazer-me brilhar.
Eu só queria...era saber amar.

Venha alguém de que eu goste pra me amar,
Sob o sol, não precisa de luar.
E que me torne pronto pra brilhar.
Que me traga um consolo, traga paz
E venha a sanidade, a vida clara.
Sintonizemos todo amor por onda.

É muito ar pra muito pouco amar.
No céu quero encontrar o meu luar,
E quero muito para alguém brilhar!

Hoje fui a um evento, mas não me lembro o nome dele agora.Por que insisto em ligar para quem me rejeita, para quem não aceita o jeito que vivo? Atendem somente pessoas de alta renda. Leslie ficou aqui, sozinha. Madama! Estou tirando os guardanapos do bolso. Anotei algo neles.

1º Guardanapo: "O segurança me observa, e como queria ser Virginia para atirar champanhe nele caso ele se aproximasse, ou para lhe dizer algo bem inteligente. Seria vulgar, Virginia seria vulgar? Ele está me encarando.Zeus queira que não seja nada pessoal, por favor."

2º Guardanapo: "Queria que olhassem para mim. Agora me sinto bêbad@. Acho que olham para mim e pensam: esse aí não tem razão de escrever e nem sabe escrever. É ridícul@. O homem que pensei ser segurança não é segurança. Então por que me olhava? Por piedade, compaixão? Ele poderia estar fingindo ser segurança porque os seguranças mesmo não perceberam que eu não era nada. Acham que quero ganhar o Nobel. Da literatura? Que coisa impossível."

3º Guardanapo. Esse eu obliterei e o porquê não pretendo dizer muito. Dizia algo sobre Leslie, sobre o nosso amor. Ela e eu nos amamos. Não me privo das crianças, mas os pais delas me privam delas. Leslie? Onde está Leslie? Ah, deve ter saído. Tem noites que é assim, ela sai, some por aí. Eu nunca lhe disse "não pode". Ela derrubou o aquário, quebrou dois vasos, e mesmo assim não fiquei bravo. Lembro-me que quando saímos juntos em um domingo ensolarado (eu havia lhe comprado algumas roupinhas em um brechó), ela sujou-se com sorvete de frutas vermelhas. Fico uma fera?, pensei. Acho que se tivesse poder, empregados, não seria autoritário. Apenas acho, pensei. Não comentaria com ninguém: o sicrano que empreguei é um doente, tenho vergonha dele! Estou fedendo carne. O padre disse-me que carne é bom; mas ele não diria isso aos queridinhos dele, pensei. Falou-me sobre trabalhar na Daslu, coisas assim, mas quando lhe pedi dinheiro, disse que era para eu ir pedir dinheiro nos faróis, e que não tenho muito de mendigo; que tentasse emprego como cumin ou algo semelhante. Uma queda gigantesca no nível de harmonia. A carne não me agrada; mas ser vegan, mesmo tendo que tomar B12, sim. Será que os escravos se apaixonavam por quem lhes davam chibatadas?, pensei. O populeú desconhecido brasileiro (não sou mais brasileiro) vive a dar sinais quando passo por eles. Sinais que parecem dizer: olhe, eu não sou vagabundo; olhe, o senhor é pobre. Pobre. Se eu pudesse, estaria longe deste país há muito tempo. Muito, muito tempo. Mas agora sempre parece ser tarde.

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