Tema 190 - O LADO BOM...
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DO OUTRO LADO
Maria Luísa Rocha

A menina brincava sozinha, criando aventuras nas quais era a heroína que vencia bruxas e derrotava dragões e monstros. Não tinha irmãos nem amigos, mas estava sempre alegre, correndo por todos os cantos da casa para perseguir os inimigos, coberta por lençóis coloridos e com uma panelinha velha na cabeça. Algum pedaço de pau na mão transformava-se em uma espada afiada que feria de morte quem ousasse invadir seus reinos. Sua imaginação impressionava seus tios, freqüentadores diários de sua casa, maravilhados com tanta vivacidade. Nos intervalos das brincadeiras, declamava poesias como a da juriti, sua preferida. Sabia de cor todas as histórias infantis que os tios contavam, inclusive as que eram inventadas para acalmar a curiosidade sem limite daquela sobrinha tão querida.

Certa tarde, Maria Amélia resolveu explorar novos territórios. Saiu de casa sorrateiramente, segurando em uma mão uma caixa de fósforos. Com a outra puxava o gato por uma corda esgarçada. Foram parar na igreja da esquina. Entrou e tratou de se esconder dentro do confessionário, desconfiada que um exército de monstros pudesse aparecer de repente. Por lá ficou até escurecer, quando então resolveu voltar, bastante aliviada de não ter havido batalha sangrenta. Ao chegar, encontrou a família em polvorosa, preocupados e chorosos, certos de que alguma desgraça havia lhe acontecido.

Depois de ouvir sermões e ralhos e levar umas boas palmadas, tomou um banho e foi dormir sem jantar.

Este seu primeiro contato com a igreja acabou sendo desolador. Durante a noite, teve pesadelos horríveis com padres gritando que iriam queimá-la viva junto com as bruxas do bairro. Acordou chorando e jurou que nunca mais pisaria em uma igreja. E assim o fez.

Já mocinha, logo após se formar e começar a dar aulas para crianças pequenas, alfabetizando-as, conheceu Raul, na saída da escola. Parece que foi amor à primeira vista. Logo se casaram. Maria Amélia acompanhava o marido às sessões espíritas que ele freqüentava assiduamente, duas vezes por semana. Ajudava também a preparar sopas para mendigos, decorava o evangelho de Kardec, visitava médiuns. Cinco anos depois, cansou-se de tudo, duvidou da história de carmas e abandonou o marido, saindo de casa apenas com a roupa do corpo e o dinheiro que juntara durante este tempo.
Foi para a Índia com um grupo de professoras, disposta a mudar radicalmente de vida. Voltou um mês depois, entoando mantras, desconfiada que era um buda. Cortou os cabelos, comprou sinos e incensos e por dez anos seguidos meditou, jejuou e fez ioga praticamente todos os dias.

Quando já estava quase levitando, ficou doente, com uma gripe fortíssima. Foi ao médico que a aconselhou a ficar longe da fumaça dos incensos pois já estava com um dos pulmões seriamente comprometido.

Começou a fazer caminhadas na pracinha perto de onde morava durante a parte da manhã. Certa vez, distraiu-se e deu uma trombada em um homem que vinha na direção oposta. Conversaram, riram bastante e saíram para tomar umas cervejas. Além da bebida, comeu torresmo e carne acebolada, coisa que não fazia há tantos anos. O resultado foi desolador, uma dor de barriga daquelas. Maria Amélia recuperou-se nos braços do novo namorado, Miguel Ângelo. Era um homem forte, rude, trabalhava como motorista de táxi. Ela se sentiu protegida no meio daqueles braços musculosos e decidiu ir morar na casa dele, na periferia da cidade. Nos anos seguintes a vida tornou-se difícil, o dinheiro mais curto. Para compensar, bebia todas as noites e fumava incontáveis cigarros. Até que o pior aconteceu: após uma pesada discussão sobre a novela, o marido deu um soco que a derrubou no chão. Esta foi a primeira de uma série de surras que se sucederam durante aproximadamente dois anos.

Maria Amélia resolveu sair de casa. Novamente apenas com a roupa do corpo, mas sem um tostão na bolsa. Mudou de cidade e foi para o interior. Percebendo que estava totalmente desamparada, sem saúde, caiu em depressão e pensou seriamente em acabar com tudo. Olhava-se no espelho e via uma velha feia, sem vários dentes, uma pele opaca, parecia um pergaminho empoeirado... Com muita dificuldade, resolveu dar uma guinada de novo na vida. Voltou a dar aulas e alugou um pequeno apartamento, para onde se mudou com um novo companheiro, um gatinho perdido, magrelo e feio como ela, encontrado na saída da escola. O tempo passou muito rápido. Já aposentada, Maria Amélia ficava em casa, cheia de lembranças da infância distante, dos tios queridos, da casa acolhedora e segura, impregnada de cheiros mágicos de pães e quitandas e do café coado na hora, nas tardes que pareciam nunca se acabar...

Cada vez mais sentia o peso dos anos e começou a se preparar para mudar para o lado de lá.

Convencida de que só poderia haver duas possibilidades para esta nova morada - ou tudo se acabaria definitivamente em puro pó orgânico e ponto final, ou haveria uma inimaginável e maravilhosa realidade a aguardá-la - Maria Amélia finalmente conheceu a paz.

Após a sua morte, os vizinhos contaram que ela costumava passar os últimos dias sentada com o gatinho no colo, um sorriso indecifrável no rosto enrugado, recitando uma pequena poesia:

"A juriti, lá no telhado, fez o seu ninho com muito cuidado...
Mas o menino, muito malvado, desfez o ninho, mas foi castigado.
Quando subia lá no telhado, caiu no tanque e ficou molhado..."

Dedico este texto ao querido tio Bebeto, grande contador de histórias e outros casos.

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