Tema 190 - O LADO BOM...
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23º. 35´ 08´´S 48º. 02´ 51´´W
Edith Piza

O Lado Bom era o bar que ficava na Rua da Igreja. É óbvio a Rua da Igreja não se chamava assim. Tinha o nome de um figurão da história pátria, mas a cidade era mais antiga do que os figurões, por isso, a Rua Campos Salles era a Rua da Igreja; a Quintino Bocaiúva era a Rua da Boiada; depois vinham a Praça da Escola, a Praça dos Amores, o Largo da Matriz, o Largo da Estação... e por aí chegava-se aos poucos lugares que havia para chegar, bastando saber que cada rua tinha a sua travessa nas esquinas das farmácias, das padarias, da Santa Casa, da igreja dos protestantes, do fórum velho, do fórum novo e um sem fim de referências que os moradores sabiam. Por essa lei não escrita, O Lado Bom ficava na rua da Igreja, entre a Esquina do Cinema e a Praça dos Amores.

Como todos os nomes de ruas da cidade, O Lado Bom também não era o O Lado Bom. Era o bar e a confeitaria do seu Bonn, que, na realidade, era Franz Schmidt, imigrante de Bonn, Alemanha. Parou na cidade a caminho de outro estado e acabou ficando: casou, teve filhos, fazia doces para casamento, batizado, padarias da cidade. Abriu sua própria confeitaria, que a rapaziada chamava de Bar do seu Bonn. Quando se marcava um encontro - para depois da missa, por exemplo - era sempre lá, no Bonn. Alguém mais criativo acabou misturando as falas e ficou Lá, do Bonn. Seu Bonn comprou a idéia e mandou fazer placa luminosa: O Lá do Bom. Um professor recém chegado à cidade procurou seu Bonn e, com muito jeito, explicou que a placa estava errada. Não se falava dessa maneira em português. O correto seria: O Lado Bom. "Na verdade, um nome muito criativo, bem bolado mesmo; e o senhor vai ver como vai pegar!" O professor falava como se a idéia fosse dele. Seu Bonn deu uma risadinha e concordou. "Mando fazer outra rapidinha lá no Bento. Ele também entende muito de português". O senhor quer dizer no Lá do Bento? - perguntou o beletrista, ignorante dos costumes da cidade, querendo fazer graça. Não, professor - disse o confeiteiro - no Bento que faz placas.

Pois foi o tal do Bento, imigrante português, que se negou a fazer a placa escrita "o lá do bonn". Segundo ele, um alentejano alfabetizado na língua de Camões, não havia mais consoantes duplas na língua portuguesa do Brasil, muito menos em final de palavra, e não seria ele a por uma nódoa na sua profissão de emplacador, escrevendo bom com dois enes. O professor também não sabia disso e nem valia a pena explicar. Seu Bonn agradeceu mais uma vez e completou: "E agora, professor, vê se não se confunde mais". E foi rir do professor com a moçada que tomava vaca preta no fundo da confeitaria.

O Lado Bom era o ponto de encontro de jovens estudantes da cidade. Ali se bebia, conversava, fazia-se a revolução, comiam-se tortas deliciosas apelidadas de "mata fome"; também se namorava, enamorava-se e rompiam-se namoros; chorava-se de tristeza, de amor, de paixão, de saudade, ria-se às gargalhadas de tudo e todos que na cidade virassem piada, fofoca, conversa fiada das línguas maldosas. Era sempre n´O Lado Bom que o pau, pacificamente verbal, comia feio nas discussões sobre política, filosofia, música, cinema, teatro, que a juventude era mais ou menos ignorante, mas bastante bem informada. Época de festivais de música, O Lado Bom fervia. Seu Bonn tocava na Rádio Vitrola RCA os discos das músicas ganhadoras e as torcidas cantavam, xingavam, riam, bebiam e riam mais.

Em torno daquelas mesas músicos, jornalistas, políticos, revolucionários, reacionários, fotógrafos, pintores, escritores, poetas, cineastas, teatrólogos, atores, atrizes iam se moldando. Todos saídos do forno das novas idéias, como os doces, e rolando nos drinks das rodadas, depois de ganhas ou perdidas disputas sobre: qual o nome da próxima diva da nouvelle vague; o novo filme de um ultra desconhecido (e quanto mais desconhecido melhor) cineasta japonês; a importância do teatro rebolado para a política nacional; os mais importantes estudos sobre a entropia, a psicanálise, a estética, a estatística, o marxismo, o fascismo, a nascente medicina nuclear... Enfim, apostava-se no conhecimento e no destino do mundo.

Os anos de 1960 iam adiantados e muitas escolhas foram feitas ali. Lutar, ser preso, morrer ou simplesmente ganhar a vida, já que os sonhos ficavam perdidos pelo caminho. A certa altura, um silêncio sombrio se abateu sobre O Lado Bom. Sem palavras permitidas e sem o riso, aos poucos O Lado Bom foi esvaziado e seu Bonn, mergulhado ele também no medo e no silêncio, resolveu fechar e, depois, vender a confeitaria. Com a mesma rapidez de muitos discursos e de muitas palavras que saíram de moda, d´O Lado Bom não restou nada. Nem a placa.

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