DESAMPARO
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Aline
Carvalho
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O ar gelado entrou-lhe pela narina e o acordou como um soco. Se é que aquele susto poderia ser chamado de acordar. Sentiu-se desorientado. Percebeu, pela visão periférica do lado direito, que estava em seu quarto. Via, ligeiramente acima, a cabeceira e, do lado, pelo canto dos olhos, a sombra negra do criado mudo com a silhueta do relógio em cima. Fazia penumbra. O ar frio continuava a entrar-lhe pela narina direita. Não conseguia se lembrar do que estava fazendo ali, nem do que estivera fazendo antes. Resolveu falar, chamar alguém, gritar. Com dificuldade, juntou ar no pulmão e tentou... mal reconheceu o som que emitiu. Um gargarejo baixo e ridículo, que não chegaria a atravessar a porta fechada. Quis levantar. Não conseguiu. Um espasmo contraiu a coxa direita. Um formigamento atingiu a mão do mesmo lado. Aspirou longamente. O ar frio ardia no interior do rosto. Percebeu que não conseguia mexer nenhum músculo do lado esquerdo. Tentou mão, perna, pé... nada. Também não conseguia sentir coisa alguma no meio das pernas. A mão direita começou a obedecer-lhe, muito lentamente. Trêmula. Olhou para ela, incrédulo. Aquela mão não era a sua. Aquela estava ligada a um tubo, preso por largas tiras de esparadrapo. Então, estava em um hospital? E o criado-mudo do seu quarto, à direita? Virou-se para olhar novamente, não conseguiu. Apenas o vulto negro que, agora, poderia ser de qualquer coisa. Não sentia cheiros. Apenas o ardor gelado de uma temperatura a que não estava acostumado. Queria puxar a mão, libertar-se dos tubos e tiras, mas ela não atendia. Queria se levantar, queria gritar... e permanecia imóvel como uma absurda estátua de si mesmo, mil vezes piorado. Sem saber de onde vinha, sentiu um líquido quente a lhe descer pela perna direita. Ficou paralisado no tempo quando a resposta finalmente lhe ocorreu. Começou a juntar todas as informações que lhe chegavam através dos sentidos partidos ao meio. Começou a achar que aquele pesadelo dos infernos talvez não fosse só um sonho... tentou gritar de novo e, dessa vez, nenhum som. O impacto da verdade tinha acabado com suas cordas vocais. Com esforço, analisou a situação: o lado esquerdo, inerte. O lado direito, talvez... Não. Ele sabia que, naquela história, não haveria nenhum lado bom. |
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