SILÊNCIO
E RENÚNCIA
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Valéria
Vanda Xavier Nunes
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A
morte daquele pai tão dedicado aos filhos, desestruturou por completo
aquela família. O pai sempre fora o provedor de tudo. Sempre cuidou
para que os filhos tivessem tudo de que precisassem na medida de suas
posses. Procurava de todas as maneiras fazer os filhos felizes, mesmo
que para isso se tornasse um pouco "generoso" demais para com
eles. Sempre os deixou à vontade para decidir o que era melhor
para suas vidas. Quem gostava de estudar, estudava, quem preferia passear
passeava, quem quisesse trabalhar, trabalhava. Por causa dessa "bondade",
alguns se dedicaram aos estudos mais que outros. Alguns prosperaram mais
que outros e por isso, uns sentiram mais, na própria pele, a falta
do pai. A
família teve que aprender a viver sem a presença alegre
e marcante do seu ente mais querido e aprender também, a ganhar
a própria vida. Foram meses de muita angústia, muitas lágrimas
e de luto fechado. Mas, a vida tinha de continuar. Como alguns irmãos
já se encontravam na cidade grande para estudar, ficou resolvido
que a viúva e o restante dos filhos se reuniriam novamente em um
mesmo lugar. Foi feita a mudança. Mudança de vida e de costumes.
As coisas não seriam nunca mais como antes. Pensavam todos. Desde
aquele dia funesto, em que o rapaz entrou no cemitério para deixar
os restos mortais de seu querido pai, coisas estranhas começaram
a acontecer em sua vida. Sempre fora um menino e um adolescente normal,
alegre, saudável, estudioso. Chegou a prestar vestibular para informática
e era um bom aluno, chegaria a ser um bom profissional no futuro. O destino,
porém, o levou para outros caminhos. Com o passar dos meses, aquele
rapaz, antes feliz, cheio de vida e saúde, começou a ter
atitudes estranhas em casa. Passou a ter manias de perseguição.
Dizia para as irmãs que tinha alguém que sempre estava perto
dele, dizendo-lhes coisas ao ouvido. Não queria se alimentar, "esta
comida está com gosto de água sanitária, vocês
estão querendo me matar", dizia para elas. Ficou dias, sem
querer ir a faculdade e em pouco tempo, abandonou o curso que parecia
tão promissor para ele. Passava os dias vagando pela cidade, com
um ar perdido, absorto. Sem vontade própria. Não falava
pra ninguém os males que lhe enchiam o espírito. Os
irmãos fizeram tudo para curá-lo. Levaram aos melhores médicos
da cidade e até de outras capitais. Chegou a ficar internado numa
casa de saúde em Recife, de onde fugiu e passou dias perdido numa
cidade grande e desconhecida para ele. Mas o destino quis que uma irmã
de sua cunhada que lá morava, o encontrasse vagando sozinho e sujo
por uma grande avenida. Tomadas as providências, trouxeram-no novamente
para sua cidade. Continuaram procurando médicos especialistas para
aquele caso que se mostrava tão estranho num rapaz que até
bem pouco tempo era tão capaz e inteligente. O que o deixara assim?
Quem ou o que fizera com que se tornasse aquele ser tão taciturno
e tão sombrio? Eram perguntas que a família vivia se fazendo.
Perdido em seus devaneios, passava os dias em companhia de si mesmo. Não
falava com ninguém, não se abria com nenhum dos irmãos.
Vivia num mutismo extremo. Nada lhe interessava mais; nem a escola nem
a família, nem os amigos. Estava inacessível. Ninguém
conhecia o que lhe ia na alma. Foi
internado várias vezes. Chegou a fugir novamente, desta vez para
o Rio de Janeiro, onde vagou por vários dias, até encontrar
a casa de uma tia que os familiares não viam há mais de
30 anos. Para a família, aquela fuga era um mistério que
nada nem ninguém poderia explicar. Como este rapaz conseguira o
endereço desta tia e como conseguira viajar para terra tão
distante, sem dinheiro e sem documentos, era um caso sem explicação.
Foi preciso que uma de suas irmãs fosse até ao Rio de Janeiro
às pressas para buscá-lo e trazê-lo de volta É
de se acreditar, quando ele dizia que ouvias vozes. É de se pensar
que, quem o guiava, eram mesmo, as vozes que ele dizia ouvir. Claro que
é difícil de acreditar nisso, mas não de se entender.
Nestas horas, a família chega a crer em tudo, principalmente na
frase que Hamlet diz para Horácio "que há mais coisas
entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia."
Por este motivo, até curandeiros, cartomantes e mães-de-santo
foram consultados para descobrir o que se passava na mente daquele rapaz
tão maltratado e ferido pela vida. Tudo foi feito para que ele
se curasse. Mas sua cura total não estava nas mãos dos homens.
Sentado
em sua cadeira de balanço, muitos quilos mais gordo, quase que
dopado pelos medicamentos, pouco fala. Só se comunica nas horas
em que deseja se alimentar em horários rígidos em conseqüência
dos remédios que precisa tomar. Há muitos anos vive assim,
no seu mutismo eterno, perdido, na bruma de seus pensamentos que ninguém,
até hoje, conseguiu encontrar. Vive num mundo só seu, onde
nada, nem ninguém, o alcança. Os
anos passam, e a falta daquele pai tão extremado, mexe ainda, profundamente,
com toda a família. Sua morte não só afetou de uma
maneira drástica, a vida do seu filho mais novo, como mudou por
completo, também a vida de uma de suas filhas mais queridas. Com
a doença do irmão, aquela moça que fora alegre, bonita
e festeira, que amava tanto o pai e que era talvez, o seu braço
direito no trabalho - transformou-se radicalmente, numa pessoa desprovida
de auto-estima. Tudo em sua vida mudou. De uma moça alegre e despreocupada
passou a ser o cabeça da família. Tomou as rédeas
da casa em suas mãos e assumiu tudo: trabalho, preocupações,
tristezas e alegrias. Para isso, abdicou da própria vida em favor
do bem estar da família e desse irmão. Vivia do trabalho
para casa. Distanciou-se dos amigos, da vida social, e dos amores. Não
casou; não teve filhos. Carrega nas costas o peso das ilusões
e das coisas que deixou de fazer por si própria. Assumiu as dores
do irmão. Com um estoicismo singular, não reclama de nada.
Claro, que às vezes, perde a paciência e diz coisas que sabe
muito bem, não são ditas pelo coração. Aceita
o irmão como um carma. Como uma cruz pesada que lhe foi imposta
pela vida. Mas bem no íntimo, sente saudade da menina e moça
que foi. Uma
pessoa observadora percebe no semblante cansado de tantas vicissitudes,
e no olhar, muitas vezes nostálgico desta moça, uma vontade
implícita de jogar tudo pro alto; as lutas diárias, os deveres,
as preocupações e as dores. No fundo, nota-se que ela ainda
carrega no peito uma vontade enorme de realizar os sonhos que deixou para
trás. Hoje,
depois de tantos anos passados, de tantas preocupações,
tristeza, saudade e dor, ela é como uma planta que murchou; que
perdeu o viço e morreu para a vida. Talvez, espere por algo que
a faça renascer de novo, quem sabe, que a faça florescer,
mas sabe também, que para ela nascer de novo e retomar sua vida
de antes seria preciso se livrar do peso da sua cruz que carrega há
tantos anos. |
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