Tema 189 - ANGÚSTIA
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SILÊNCIO E RENÚNCIA
Valéria Vanda Xavier Nunes

A morte daquele pai tão dedicado aos filhos, desestruturou por completo aquela família. O pai sempre fora o provedor de tudo. Sempre cuidou para que os filhos tivessem tudo de que precisassem na medida de suas posses. Procurava de todas as maneiras fazer os filhos felizes, mesmo que para isso se tornasse um pouco "generoso" demais para com eles. Sempre os deixou à vontade para decidir o que era melhor para suas vidas. Quem gostava de estudar, estudava, quem preferia passear passeava, quem quisesse trabalhar, trabalhava. Por causa dessa "bondade", alguns se dedicaram aos estudos mais que outros. Alguns prosperaram mais que outros e por isso, uns sentiram mais, na própria pele, a falta do pai.

A família teve que aprender a viver sem a presença alegre e marcante do seu ente mais querido e aprender também, a ganhar a própria vida. Foram meses de muita angústia, muitas lágrimas e de luto fechado. Mas, a vida tinha de continuar. Como alguns irmãos já se encontravam na cidade grande para estudar, ficou resolvido que a viúva e o restante dos filhos se reuniriam novamente em um mesmo lugar. Foi feita a mudança. Mudança de vida e de costumes. As coisas não seriam nunca mais como antes. Pensavam todos.

Desde aquele dia funesto, em que o rapaz entrou no cemitério para deixar os restos mortais de seu querido pai, coisas estranhas começaram a acontecer em sua vida. Sempre fora um menino e um adolescente normal, alegre, saudável, estudioso. Chegou a prestar vestibular para informática e era um bom aluno, chegaria a ser um bom profissional no futuro. O destino, porém, o levou para outros caminhos. Com o passar dos meses, aquele rapaz, antes feliz, cheio de vida e saúde, começou a ter atitudes estranhas em casa. Passou a ter manias de perseguição. Dizia para as irmãs que tinha alguém que sempre estava perto dele, dizendo-lhes coisas ao ouvido. Não queria se alimentar, "esta comida está com gosto de água sanitária, vocês estão querendo me matar", dizia para elas. Ficou dias, sem querer ir a faculdade e em pouco tempo, abandonou o curso que parecia tão promissor para ele. Passava os dias vagando pela cidade, com um ar perdido, absorto. Sem vontade própria. Não falava pra ninguém os males que lhe enchiam o espírito.

Os irmãos fizeram tudo para curá-lo. Levaram aos melhores médicos da cidade e até de outras capitais. Chegou a ficar internado numa casa de saúde em Recife, de onde fugiu e passou dias perdido numa cidade grande e desconhecida para ele. Mas o destino quis que uma irmã de sua cunhada que lá morava, o encontrasse vagando sozinho e sujo por uma grande avenida. Tomadas as providências, trouxeram-no novamente para sua cidade. Continuaram procurando médicos especialistas para aquele caso que se mostrava tão estranho num rapaz que até bem pouco tempo era tão capaz e inteligente. O que o deixara assim? Quem ou o que fizera com que se tornasse aquele ser tão taciturno e tão sombrio? Eram perguntas que a família vivia se fazendo. Perdido em seus devaneios, passava os dias em companhia de si mesmo. Não falava com ninguém, não se abria com nenhum dos irmãos. Vivia num mutismo extremo. Nada lhe interessava mais; nem a escola nem a família, nem os amigos. Estava inacessível. Ninguém conhecia o que lhe ia na alma.

Foi internado várias vezes. Chegou a fugir novamente, desta vez para o Rio de Janeiro, onde vagou por vários dias, até encontrar a casa de uma tia que os familiares não viam há mais de 30 anos. Para a família, aquela fuga era um mistério que nada nem ninguém poderia explicar. Como este rapaz conseguira o endereço desta tia e como conseguira viajar para terra tão distante, sem dinheiro e sem documentos, era um caso sem explicação. Foi preciso que uma de suas irmãs fosse até ao Rio de Janeiro às pressas para buscá-lo e trazê-lo de volta É de se acreditar, quando ele dizia que ouvias vozes. É de se pensar que, quem o guiava, eram mesmo, as vozes que ele dizia ouvir. Claro que é difícil de acreditar nisso, mas não de se entender. Nestas horas, a família chega a crer em tudo, principalmente na frase que Hamlet diz para Horácio "que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia." Por este motivo, até curandeiros, cartomantes e mães-de-santo foram consultados para descobrir o que se passava na mente daquele rapaz tão maltratado e ferido pela vida. Tudo foi feito para que ele se curasse. Mas sua cura total não estava nas mãos dos homens.

Sentado em sua cadeira de balanço, muitos quilos mais gordo, quase que dopado pelos medicamentos, pouco fala. Só se comunica nas horas em que deseja se alimentar em horários rígidos em conseqüência dos remédios que precisa tomar. Há muitos anos vive assim, no seu mutismo eterno, perdido, na bruma de seus pensamentos que ninguém, até hoje, conseguiu encontrar. Vive num mundo só seu, onde nada, nem ninguém, o alcança.

Os anos passam, e a falta daquele pai tão extremado, mexe ainda, profundamente, com toda a família. Sua morte não só afetou de uma maneira drástica, a vida do seu filho mais novo, como mudou por completo, também a vida de uma de suas filhas mais queridas. Com a doença do irmão, aquela moça que fora alegre, bonita e festeira, que amava tanto o pai e que era talvez, o seu braço direito no trabalho - transformou-se radicalmente, numa pessoa desprovida de auto-estima. Tudo em sua vida mudou. De uma moça alegre e despreocupada passou a ser o cabeça da família. Tomou as rédeas da casa em suas mãos e assumiu tudo: trabalho, preocupações, tristezas e alegrias. Para isso, abdicou da própria vida em favor do bem estar da família e desse irmão. Vivia do trabalho para casa. Distanciou-se dos amigos, da vida social, e dos amores. Não casou; não teve filhos. Carrega nas costas o peso das ilusões e das coisas que deixou de fazer por si própria. Assumiu as dores do irmão. Com um estoicismo singular, não reclama de nada. Claro, que às vezes, perde a paciência e diz coisas que sabe muito bem, não são ditas pelo coração. Aceita o irmão como um carma. Como uma cruz pesada que lhe foi imposta pela vida. Mas bem no íntimo, sente saudade da menina e moça que foi.

Uma pessoa observadora percebe no semblante cansado de tantas vicissitudes, e no olhar, muitas vezes nostálgico desta moça, uma vontade implícita de jogar tudo pro alto; as lutas diárias, os deveres, as preocupações e as dores. No fundo, nota-se que ela ainda carrega no peito uma vontade enorme de realizar os sonhos que deixou para trás.

Hoje, depois de tantos anos passados, de tantas preocupações, tristeza, saudade e dor, ela é como uma planta que murchou; que perdeu o viço e morreu para a vida. Talvez, espere por algo que a faça renascer de novo, quem sabe, que a faça florescer, mas sabe também, que para ela nascer de novo e retomar sua vida de antes seria preciso se livrar do peso da sua cruz que carrega há tantos anos.
Quem sabe um dia, ela consiga quebrar as amarras que a prendem a essa cruz e finalmente se liberte para a vida.

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