Tema 189 - ANGÚSTIA
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SÓ DÓI QUANDO EU RESPIRO
Sharon Ratis

Acordei nesta madrugada sentindo sua falta. Um nó no peito tão apertado. Fiquei acordada na escuridão ouvindo os sons da cidade. Um plick cada vez que as cores do farol mudava, o barulho do escapamento de algum motociclista exibido, uma garrafa se espatifando na calçada, gatos miando. Foi a hora em que o nó apertou ainda mais. Senti tanta saudade do miado dele. Às vezes, sabe ? Parecia que me interrogava: onde você vai ? Vou ficar sozinho de novo ? O travesseiro ficou tão grande de repente que me levantei. Teve um período que ele gostava de dormir ali. Para não incomodá-lo, eu deitava a cabeça só numa pontinha, só para apoiar o peso e me encostava em seu corpo macio. Você vai dormir aí ? Tudo bem, vou fazer seu bum-bunzão de travesseiro. Ele ronronava satisfeito. Assim passávamos a noite. É sabido que os gatos são mais ativos à noite, mas ele dormia o tempo todo. Conheci um rapaz pai de uma corujinha. Eles viveram juntos por mais de quinze anos. As corujas não gostam de água, elas nem bebem água, mas a dele adorava brincar na pia. Ora tentava nadar como um patinho, ora fazia o fio d'água de chuveiro. Depois sacudia as penas molhando tudo ao seu redor. Dizem que a convivência torna os seres parecidos. Não que meu amigo tenha passado a se alimentar de camundongos, mas meio que trocava o dia pela noite. Não foram poucas as vezes que acordei em posições que mais pareciam felinas do que humanas.

Fui para a varanda e acendi um cigarro. Tenho fotografias belíssimas que tirei dele ali. Ele se espreguiçando de barriga para cima - eu não resistia: abaixava e mordiscava a barriga dele. O pelo ali é mais fininho, mais macio. Eu mordia e pousava o rosto só para sentir a carícia do seu pelo. Dava-me uma sensação de infinitude. Seria sempre assim.

Tive vontade de conversar com o amigo corujeiro. Certamente estaria acordado, mas não quis ser inconveniente. Ele perdera sua filhota há quase dois anos. De vez em quando ficava encimesmado, pensando nela. Suas feições adquiriam um esgar angustiante. Tive ímpeto de ver se as minhas estavam assim, mas, a caminho do banheiro, entrei no quarto e peguei uma manta. Voltei para a varanda. Percebi que ficaria ali até o sol se levantar.

Nós nos encontramos num começo de noite, quando eu voltava do mercadinho. Na época, eu ainda comia carne e tinha ido buscar meio quilo. Já o avistei num ronronado misturado com um miado andando em minha direção. Abaixei, fiz um carinho e lhe dei uma bolinha de carne. Ele se dividia em comer, olhar para os lados para ver se ninguém vinha lhe roubar aquela preciosa refeição e olhar para mim. Aí foi minha vez de olhar para os lados: você não tem dono, não é ? Quer ir para casa comigo ? Ele se deixava acariciar enquanto comia. Quando terminou, peguei-o no colo - tão leve, meu pai - e o levei comigo.

Já em casa, dei-lhe o restante da carne que rechearia umas panquecas e fiquei a observá-lo. Dessa vez, não o acarinhei, deixei-o comer em paz. Ele repetia o comportamento da praça: comia, olhava em volta, olhava para mim e, ao mesmo tempo, com a boca cheia, tentava miar e ronronar. Calma, ninguém vai roubar sua comida. Nunca mais você vai sentir fome, eu prometo. Naquela noite, jantei um miojo, satisfeita.

Ele parecia um filhote de gato-do-mato. Seu pelo era tigrado, cinza claro, quase prateado no peito e no rosto, com listras escuras. A barriga era clarinha, mas no inverno ficava cor de ferrugem. Seus olhos pareciam ouro derretido com uma fenda fácil de decifrar no meio. No sol, viravam duas esmeraldas.

Já de barriguinha cheia, ele foi conhecer o novo ambiente. Esperei que ele estranhasse, elegesse algum lugar como "canto seguro" e lá ficasse. Enganei-me. Ele se comportava como se tivesse nascido em casa. Pulou no sofá e começou sua toillette. Minha vida nunca mais seria igual.

São tantas as lembranças ao longo desses dez anos! Os dez melhores anos da minha vida. Meu amigo da coruja foi mais sortudo: a vida dele teve quinze melhores anos. Se eu for falar de cada uma, este conto/crônica vira um livro. Melhor terminar aqui dizendo que quando o sol se levantou, eu chorava copiosamente.

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