Tema 189 - ANGÚSTIA
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MAL AS ALTURAS
Flavio Luengo Gimenez

Angústia.Era bem isso que ele sentia, enquanto balançava perigosamente no terraço do prédio do Centro onde morava e as pessoas embaixo tentavam demovê-lo da idéia de um mergulho na escuridão, no Nada absoluto. Não que ele não tivesse coragem, não que ele já não houvesse pensado sobre isto várias vezes. Não era essa a questão, o fato é que se cansara de tentar viver mais um pouco e de tentativa em tentativa saborear o doce travo da desilusão e da decepção. Ele estendeu a mão e um grito abafado se ouviu na multidão que acompanhava seus movimentos. Todos tinham a certeza que ele saltaria. Não, ainda não, ele se espreguiçava porque até nestes momentos a gente sente preguiça. Restava o consolo de não ter de ir mais ao dentista! Nem de trabalhar mais para tentar sustentar o aluguel, a pensão da ex-esposa e o pouco que usava para viver.

Ele achava que não, mas um pequeno filme começou a se formar em sua mente: Como foi que chegara a isso, a este perigoso limite que o colocava à beira de sumir do mundo em ato definitivo?

--Que será que deu nele?

--Sempre foi meio esquisito.

--Verdade, morando só naquele apartamento velho, cercado de livros e escrevendo só podia dar nisto.

--Ele escreve muito bem!

--Ele conta a história de um homem, um solitário homem, que resolve buscar a si mesmo na infinitude das montanhas altas. Ele escala as enormes cadeias e cordilheiras à busca de seu próprio íntimo, à busca de seu próprio sonho. "Ele caminha nas nuvens geladas do eterno inverno das montanhas, seus pés enregelados chafurdam na lama e no gelo das altitudes. Quando ele pensa estar chegando ao ápice, surge mais um obstáculo. Quando ele imagina que atrás do outro monte haverá mais um outro espelho de si mesmo, ele se vê subindo a montanha às avessas, se vê erguendo as mãos para o céu estrelado e se vê, ele mesmo, como se outro fosse, a subir as escarpas do Outro Lado, só para finalmente descobrir que ele e o Outro, que competia com ele em habilidade, são a mesma pessoa."

--Nossa! Ele, aquele moço ali cheio de barba, foi ele mesmo que escreveu isto?

--Verdade. Nem parece ele, ele mudou muito desde...

--...Desde o quê?

Enquanto as pessoas murmuravam, o pequeno filme continuava em sua mente, como um moto-contínuo, auto-impulsionado por sua própria energia, a energia que o fizera viver até então e que agora parece tê-lo abandonado de vez. Continuava a girar a manivela de seu sonho, enquanto que ela já ia longe nesta hora, como se fora a estrela vésper que brilha nas primeiras horas do dia ou ao cair da noite fria. Ele se via nos seus olhos, o que ela faria se o visse assim? Como ela reagiria sabendo que provocara uma tempestade, um maremoto nele, uma devastação tão grande? Um grande pássaro o olhava apiedado. Dizia em sua língua cifrada: "Não tentes bancar Ícaro que por muito menos perdeu as asas e se precipitou no chumbo do eterno mar, onde repousam os corpos de todos os naufrágios e os mistérios das marés vermelhas de sangue!"

--Ele é um bom homem.

--Como assim? Ele é maluco.

--Sempre o vejo trazendo a mãe. Ela tem cabelos brancos como o algodão e ela sempre lhe traz alguns pratos aquecidos que ele acaba consumindo durante toda a semana.

--Verdade. Ela sempre vem aos domingos. Ele sempre a busca no pequeno apartamento onde ela prefere morar porque não quer dar trabalho a ele. No entanto, ela aceita de bom grado dormir em seu apartamento quando é convidada.

Ele vê o filme se acelerar, vê ao contrário as mãos delas se despegando das suas depois da noite maravilhosa, vê a juras de eterno amor se desvanecendo na madrugada, a promessa de viver junto só durar o tempo suficiente de fazer uma mala e desfazer a outra e partir escondida na escuridão protegida pelo sono providencial dele... Tudo que é bom dura pouco, muito pouco. Afinal, as horas passam na tarde chuvosa e ele vê as gotas grossas da precipitação se estenderem ao Infinito cinza da cidade enevoada, os picos dos edifícios se misturando às lembranças das montanhas do Tibete que ele visitara e tentara eternizar no conto do homem que encontra seu duplo acima das altitudes corretas. No filme ele vê o primeiro encontro furtivo com ela, num apartamento alugado perto do Centro, que eles fizeram ser a "sua casa" e onde ela espalhava suas flores quando ele saía e voltava ao seu apartamento ou quando ele acordava e tinha de trabalhar para dar sustento e substância à sua vida.

--Olha lá, meu Deus, dessa vez ele se atira.

--Não acho. Ele está apenas cansado. Cansado de escrever laudas e ninguém ler, cansado de esperar por ela que nunca chega, pasmo pelas pessoas que se aproveitaram dele quando quiseram...Triste pelos poucos amigos que ficaram.

--Ai meu Deus.

Um Oh se eleva da multidão, num mantra de medo quando eles percebem que há algo mais do que pura enganação e teatro naqueles gestos bem contidos e na preguiça de seu autor. Há algo de ameaçador em seus gestos pensados, há algo de etéreo nos olhos daquele que olha a abóbada de um céu cinzento e aspira as últimas gotas de sua vida, uma vida que principiava no ventre dela e na sua concupiscência, uma nova vida que agitava as entranhas dela qual pequena medusa, iridescente e travessa criatura que o chamava do íntimo dela, fazendo-o vogar nas nuvens do prazer infinito enquanto ela se deleitava com a sua calma absoluta, uma vida que se reiniciara a partir do momento em que os dois se encontraram naquele pequeno apartamento barato, cheio de móveis leves e de coisas que ela trazia de feiras de artesanato, coisa que ela fazia como poucas que ele vira fazer, assim como sua deliciosa comida, uma bela comida cheia de massas, pastas, molhos de tomate, cheiros de ervas e apimentada como ela em todos os sentidos; uma vida que seria breve porque eles eram muito diferentes, ele sóbrio, recatado, ela escandalosa, cheia de brilhos. Ele sabia que eles eram feitos um para o outro, em sua ânsia de se acharem nos furtivos encontros do pequeno apartamento que concordaram e habitar, depois que ele se separou e viveu a mais terrível angústia porque seus filhos simplesmente o negaram e sua ex-esposa em menos de dois meses já circulava com outro, o que fez crescer suas suspeitas de que nada fora em sua vida.

--Ele gostava de Helena.

--Mas ela, ela era uma doida. Sempre com aqueles vestidos.

--O perfume era arrebatador! O elevador denunciava sua presença!

--Ele sabia que ia acabar assim. Veja, quase trinta anos de diferença. Quem em santa consciência acha que isso vinga?

--Ah, vinga. Mas ela era um vulcão, ele já nem tanto. Isso conta nas horas que importam, você sabe.

--Ai meu Deus!

Longe ia Helena. Cabelos soltos, livre da prisão que se impusera por conta daquele homem misterioso que a cativara e ela se sentira tão protegida que se deixara prender por horas, dias até, com ele em perfeita comunhão. Longe ia Helena, cabelos lindos perfumados, coroados pelo vento de ouro de sua alma maravilhosa. Maravilhosa Helena, ele pensava, quando pisou no último degrau que faltava e sentiu seu pé afundar no macio travesseiro do ar frio que o tragou sem piedade.

--Bom, pelo menos ele a amou de verdade. Com todos os ossos, com toda a força de seu coração.

--Ela era um vulcão.

Do Outro Lado, ele percebeu que terminara a caminhada.

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