SEM
DEFESAS MORTAIS
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Eduardo
Prearo
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Um
leque de misérias orbita sua vida, e a que ele, Bruno, acha naquele
momento mais pungente é a solidão. Merecimento, pensa, haja
vista que Jesus Cristo talvez nunca tenha sido realmente correspondido
por ele. Vai até a igreja, é domingo, um domingo sem uma
nuvem até depois do sol se pôr. Mas a missa começa
outra hora, então Bruno desiste. Na cidade lhe parece que há
milhões de teias de aranha, e ele passa o domingo daquele jeito,
envergonhado de andar na rua, com uma desinteria inopinada. De noite,
acende uma vela, mas de que adianta se não ora ao acendê-la
ou com ela acesa? Pouco a pouco, o rapaz quarentão, um senhor,
se conforma com a sua situação material e espiritual. Passam
vários Natais, sempre quase os mesmos Natais, e Bruno agora percebe-se
mais velho, mesmo tendo esquecido de como era há um ano. Acorda
cansado e não há mais alegrias, mas as esperanças
persistem e persistirão até o último minuto. É
manhã fria e ele tenta não falar sozinho, não imitar
ninguém. Ainda crê que não sabe se colocar, que ao
falar vai ofender, que o que escreve ofende. De qualquer forma, resolve
continuar arriscando. Acha-se bruto na miséria, e não no
contrário dela, também porque o contrário, o zênite,
ainda não aconteceu. As vozinhas que ele ouvia eram sarcásticas,
afinal ele não era o melhor do mundo em nada. Sai, o Sol queima,
há coisas novas nas ruas, emendas, estilos, palavras, sussurros,
aumentos. Trabalha, volta, sempre só, põe-se a escrever
diante do velho computador que ele pensou que um dia não veria
mais. Escrever agora lhe parece perigoso porque os interrogatórios
sobre causas de súbito importantes crescem. Mas ele não,
ele não cresce, e sem defesas vê-se obrigado a repensar sobre
sua vida. Come um lanche chutadinho, tentando encontrar saídas.
Se não sabe mesmo o que faz, pede perdão. Não se
anima mais, mas quando se animou não se lembra. Vai, tenta trabalhar,
volta, sempre só, vestindo o terno cinza-chumbo e a gravata de
listras ocres e azul-marinho. Corre, tem raiva de si próprio, entra
em uma igreja onde há sete círios acesos, ele conta. Chove,
e ele não ora. Não chora. Chorou faz algum tempo, mas foi
porque lhe disseram que ele não sabia viver em sociedade. Mas ninguém
notou, até riram, riram e riram, ainda bem. Vai, trabalha, mas
pra si próprio será sempre um vagabundo, não um trabalhador
profundo como queria ser. Acorda, põe a camisa branca, o terno,
a gravata, os sapatos quase furados, anda pelas ruas desertas as cinco
da manhã, quando ainda é escuro e nas montanhas há
luzes estranhas. Está mais para a animação dos estivadores,
dos trabalhadores rurais, dos operários das grandes indústrias
do que para a seriedade das pessoas dos escritórios, das repartições
públicas, das empresas sofisticadas. Gosta de força-tarefa
e sempre quis ser um worklover. Conhece Bruna, sua xará, em uma
boate que entra por acaso, mas nada é por acaso. Ela traja roupas
pretas, gosta do preto, parece dark. Ficam amigos, mas mesmo Bruno não
tendo muita atração por ela, um ano depois se casam. É
o fim da miséria, pelo menos no que diz respeito à solidão.
O casamento se realiza no cartório em uma terça e na sexta
na igreja. A cerimônia é simples, a mais barata que encontram.
Não vai ninguém além dos padrinhos, desconhecidos
que eles encontraram na rua. Bruna também tem mais de quarenta
e cinco anos, e é mais tímida do que Bruno. Após
dois anos se separam. Na noite de núpcias não houve nada
a não ser um brinde com champanhe mesmo, desses franceses. Bruno
vive em um quartinho de pensão, alugado a muito custo. Deixou tudo
para Bruna, tudo o que conseguiram durante o casamento. Ela não
quis abrir mão de nada, alegando que tudo o que compraram saiu
do bolso dela, que era secretária bilingue. Bruno sai a noite,
gosta de entrar em becos. E em uma noite é esfaqueado por três
mulheres famintas das ruas. Bruna vai ao enterro, mas não de preto,
ela vai de branco, pela primeira vez veste o branco. Implora para que
Bruno se levante do caixão, Bruno que veste o terno cinza-chumbo
e a gravata com listras ocres e azul-marinho. Alguém lhe dá
uma carta no velório. É uma carta de Bruno, encontrada em
seu quartinho, uma espécie de testamento. Ela abre e lê.
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