Tema 189 - ANGÚSTIA
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SEM DEFESAS MORTAIS
Eduardo Prearo

Um leque de misérias orbita sua vida, e a que ele, Bruno, acha naquele momento mais pungente é a solidão. Merecimento, pensa, haja vista que Jesus Cristo talvez nunca tenha sido realmente correspondido por ele. Vai até a igreja, é domingo, um domingo sem uma nuvem até depois do sol se pôr. Mas a missa começa outra hora, então Bruno desiste. Na cidade lhe parece que há milhões de teias de aranha, e ele passa o domingo daquele jeito, envergonhado de andar na rua, com uma desinteria inopinada. De noite, acende uma vela, mas de que adianta se não ora ao acendê-la ou com ela acesa? Pouco a pouco, o rapaz quarentão, um senhor, se conforma com a sua situação material e espiritual. Passam vários Natais, sempre quase os mesmos Natais, e Bruno agora percebe-se mais velho, mesmo tendo esquecido de como era há um ano. Acorda cansado e não há mais alegrias, mas as esperanças persistem e persistirão até o último minuto. É manhã fria e ele tenta não falar sozinho, não imitar ninguém. Ainda crê que não sabe se colocar, que ao falar vai ofender, que o que escreve ofende. De qualquer forma, resolve continuar arriscando. Acha-se bruto na miséria, e não no contrário dela, também porque o contrário, o zênite, ainda não aconteceu. As vozinhas que ele ouvia eram sarcásticas, afinal ele não era o melhor do mundo em nada. Sai, o Sol queima, há coisas novas nas ruas, emendas, estilos, palavras, sussurros, aumentos. Trabalha, volta, sempre só, põe-se a escrever diante do velho computador que ele pensou que um dia não veria mais. Escrever agora lhe parece perigoso porque os interrogatórios sobre causas de súbito importantes crescem. Mas ele não, ele não cresce, e sem defesas vê-se obrigado a repensar sobre sua vida. Come um lanche chutadinho, tentando encontrar saídas. Se não sabe mesmo o que faz, pede perdão. Não se anima mais, mas quando se animou não se lembra. Vai, tenta trabalhar, volta, sempre só, vestindo o terno cinza-chumbo e a gravata de listras ocres e azul-marinho. Corre, tem raiva de si próprio, entra em uma igreja onde há sete círios acesos, ele conta. Chove, e ele não ora. Não chora. Chorou faz algum tempo, mas foi porque lhe disseram que ele não sabia viver em sociedade. Mas ninguém notou, até riram, riram e riram, ainda bem. Vai, trabalha, mas pra si próprio será sempre um vagabundo, não um trabalhador profundo como queria ser. Acorda, põe a camisa branca, o terno, a gravata, os sapatos quase furados, anda pelas ruas desertas as cinco da manhã, quando ainda é escuro e nas montanhas há luzes estranhas. Está mais para a animação dos estivadores, dos trabalhadores rurais, dos operários das grandes indústrias do que para a seriedade das pessoas dos escritórios, das repartições públicas, das empresas sofisticadas. Gosta de força-tarefa e sempre quis ser um worklover. Conhece Bruna, sua xará, em uma boate que entra por acaso, mas nada é por acaso. Ela traja roupas pretas, gosta do preto, parece dark. Ficam amigos, mas mesmo Bruno não tendo muita atração por ela, um ano depois se casam. É o fim da miséria, pelo menos no que diz respeito à solidão. O casamento se realiza no cartório em uma terça e na sexta na igreja. A cerimônia é simples, a mais barata que encontram. Não vai ninguém além dos padrinhos, desconhecidos que eles encontraram na rua. Bruna também tem mais de quarenta e cinco anos, e é mais tímida do que Bruno. Após dois anos se separam. Na noite de núpcias não houve nada a não ser um brinde com champanhe mesmo, desses franceses. Bruno vive em um quartinho de pensão, alugado a muito custo. Deixou tudo para Bruna, tudo o que conseguiram durante o casamento. Ela não quis abrir mão de nada, alegando que tudo o que compraram saiu do bolso dela, que era secretária bilingue. Bruno sai a noite, gosta de entrar em becos. E em uma noite é esfaqueado por três mulheres famintas das ruas. Bruna vai ao enterro, mas não de preto, ela vai de branco, pela primeira vez veste o branco. Implora para que Bruno se levante do caixão, Bruno que veste o terno cinza-chumbo e a gravata com listras ocres e azul-marinho. Alguém lhe dá uma carta no velório. É uma carta de Bruno, encontrada em seu quartinho, uma espécie de testamento. Ela abre e lê.
- Bruna, deixo-lhe um relógio do Paraguay, cinquenta reais que fui ajuntando, minhas roupas que estão em uma mala, pois nunca as deixo em cabides, e mais a aliança do nosso casamento. Sabia que meu fim seria assim. Deixo-lhe também meus sonhos, sonhos em que eu me via como alguém que deu certo. Creme-me, e jogue as cinzas em um lugar paradisíaco.
Bruna sai do crematório com um imenso saco de cinzas e fica a andar por avenidas durante horas, sem saber ao certo o que fazer. Depois, cansada, em uma estação de trem, larga as cinzas em um cantinho e parte.

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