Tema 189 - ANGÚSTIA
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AS ÚLTIMAS PALAVRAS
Agliberto Cerqueira

Não consigo entender como os mais profundos sentimentos podem ser tão suscetíveis e frágeis a ponto de amarmos em diferentes níveis de intensidade e odiarmos no mesmo tom. Pior: às vezes ao mesmo tempo e em relação às mesmas pessoas. Chego a crer que não nascemos para sermos submetidos ao amor ou dominados pelo ódio: somos apenas consequência do destino que nos persegue espionando-nos as nossas costas, armando suas armadilhas e esperando os instantes de fraqueza, até que caímos e nos embaraçamos, como um inseto, em sua teia inesperada e pegajosa. Por isso devemos viver tomando os devidos cuidados e mantendo distâncias escrupulosas de nossos semelhantes, conforme nossos interesses particulares, momentâneos desejos ou íntimas necessidades, mais ou menos confessáveis, sem direitos e obrigações e cotidianos como os animais, irracionais, dos quais, de acordo com a genética, não nos descolamos.

Todo esse discurso humanamente manquitola, tosco e discutível, só para contar e tentar justificar o que me aconteceu, há pouco tempo, quando ainda era o gerente de imprensa de uma promissora companhia do ramo farmacêutico. Antes de mais nada deixem eu dizer: sou jornalista, pós-graduado, falo com fluência três idiomas, além do português, claro, mas é melhor esclarecer porque existem animados seres brasileiros que o consideram no currículo, supondo que talvez fosse concebível que pudessem ter crescido zurrando ou mugindo. Confesso também, sem falsa modéstia: tenho uma bela voz, bela estampa e me conservo bem para os meus quase quarenta anos. Ou seja, não sou de se jogar fora, porque não dizer? Tanto que Fatiminha, minha esposa, que neste momento enquanto raciocino tudo isto está junto a mim no aconchego de nossa cama, me mantém sob rédea curta (ainda que eu não seja um equino), desde os tempos de namoro, contando hoje com a aliança providencial de nossos três filhos: o mais velho com treze, o do meio com onze e a menina com oito. De coração: os quatro são a minha razão de existir, descontando meu pai e minha mãe porque vêm antes de tudo.

Porém, como vinha tentando explicar e vocês já devem ter percebido, quero encurtar a história e confirmar que a carne é fraca. Fraquíssima. E o amor é cego. Ceguíssimo. Tem os olhos tapados de catarata. E, neste meu caso de paixão alucinada, arrebatadora e de infortúnio previsível, também é surdo. Tão surdo que não ouviu os conselhos que eu mesmo me dei e os quais desprezei como se eu fosse, assim, um estranho para mim. Como se eu não me amasse! Como se eu quisesse me ver sofrendo! E isso desde o dia em que Luísa, ah! Luisinha, Luisita, Lui, Lu, Luísa, com acento agudo e demais apetrechos, apareceu em minha vida há uns quatro ou cinco meses. Falando assim até parece que faço pouco caso do tempo que nos conhecemos. Querem saber com precisão matemática? Quatro meses, dezessete dias, vinte e três horas e mais esta noite e o agora que se arrasta desde o instante em que cheguei em casa, até sei lá que horas porque não vou pegar no sono tão já. Preciso pensar nela.

Bem, tudo começou quando a vi pela primeira vez, num hotel de luxo do centro de São Paulo. Calma, não levem a mal o nosso voluptuoso romance por esse início, deixem eu explicar: tínhamos, eu e meus colegas da empresa, diretores e presidente, acabado de finalizar nossas atividades na convenção anual destinada à imprensa em geral, entidades médicas e governo. Os trabalhos se encerravam após a cansativa rotina de discursos, vídeos, cumprimentos, mesuras, puxasaquismo, coquetel, uísque 15 anos para os amigos, oitinho para o resto, filé ao molho madeira (raros cogumelos), uma bola de sorvete e entrevistas. Eu, esgotado, após uma semana de trabalho árduo durante a preparação do evento, segui para a sala Vip e, com todo merecimento, pedi um quinzão com duas pedras de gelo a um dos garçons. Aliás, era o primeiro álcool da noite, quando uma das recepcionistas, muito bonita por sinal, entra na sala:

--- Com licença, a senhora Luísa, da Gazeta Médica Metropolitana - Gamemet (não é trocadilho, é assim mesmo que a empresa se apelidava), ...quer falar com o senhor... Juro que a moça deu um sorrisinho indisfarçável e maroto quando pronunciou Gamemet.

Puta que o pariu! Jornalista é mesmo um bicho infatigável, pensei. Que caralho! Fim de noite, arrebentado, pés doendo, querendo bebericar meu uisquinho e uma pentelha, provavelmente uma senhora, já passada, cabelo azulado e armado de laquê, vem me aporrinhar com bobagens para preencher os calhaus de seu jornaleco.

Numa vã tentativa de ainda evitar o enchimento de saco perguntei à recepcionista (olhando bem agora, depois de uns goles de uísque, notei que era também muito gostosa):

--- Sabe se ela já conversou com o pessoal do marketing?

--- Foi a primeira coisa que perguntei mas ela disse que queria era falar com o senhor. Acentuou o "com o senhor". Que merda pensei.

--- Tá bom. Peça para ela entrar... mas, olha, por favor... (e atirei-lhe um sorriso um tanto malandro, meio canastrão, deveras comedor) ...por favor, não me chame mais de senhor, tá bom querida?

Odeio usar esse termo "querida", tanto quanto palavras em inglês, ainda mais por pessoas que pensam que dominam o idioma: acho boçal e pernóstico, porém, a situação exigiu uma cutucada, um empurrãozinho. A garota sorriu, puxou para trás da orelha a mecha de cabelos da testa, caminhou para a porta sobre as altas ancas e saiu. Ali havia uma trilha a ser percorrida, uma floresta a ser desbastada, pensei. Distraí-me balançando o copo de uísque, olhando o gelo e esperando a velhinha.

--- Olá!

Olhei em direção à porta e, no ato, esqueci a recepcionista. Que voz, que coisa mais linda, mais encantadora, mais deliciosa, flutuava sorrindo em minha direção. Puta la merda, exclamei para mim mesmo, como será que tudo isso foi parar na Gazeta Médica Metropolitana - vulgo Gamemet, da qual eu nunca ouvira falar? Uma morenaça, alta, cabelos bem pretos, ondulados, compridos, olhos azuis (não usava lentes comprovei depois), lábios vermelhos, carnudos e macios (degustei no dia seguinte) e, daí por diante, meu olhar foi se derretendo nos demais predicados enquanto os meus sentidos se perdiam e se encontravam naquilo que a lucidez permitia: o decote e o volume dos seios (naturais posso afirmar com a certeza e o carinho do tato), a cinturinha fina (presa e medida posteriormente com minhas mãos em pinças), o quadril soberbo (amplo, geral e irrestrito), as coxas nutridas e longas por debaixo da saia curta e o perfume. Senti o doce perfume quando o monumento estancou a minha frente. Eu já estava em pé, abobalhado, procurando me recompor da surpresa agradável e exuberante. Para falar a verdade já me apaixonara. Não fazia sentido resistir. Porém, para não dizer que não lutei, como penúltimo recurso pensei bravamente em Fatiminha. Faltou concentração. Em última instância vislumbrei a carinha de cada uma das crianças. Em vão. Implacável, o destino havia comprometido uma das minhas metades. A mais fraca. Em contrapartida, a mais romântica: anestesiada pelo veneno e envolvida na teia úmida e convidativa da aranha.

--- Meu nome é Luísa e sou editora-chefe da Gazeta Médica Metropolitana... (omitiu, ainda bem, Gamemet - teria sido constrangedor àquela altura) ...nossa sede fica em Taboquinhas, é um subdistrito de Cotia, aqui perto mesmo... na Grande São Paulo. Apresentou-se e entregou o seu cartão de visitas. Também lhe dei o meu e ficamos durante alguns minutos nos enganando sobre o sucesso da convenção, a capacidade de investimento de nossa empresa, a importância de seu jornal para Taboquinhas e adjacências, a tiragem comprovada por uma auditoria independente, penetração junto ao público-alvo e outras bobagens inúteis. Percebi, porém, como ela também deve ter percebido em relação a mim, que nossos olhos fitavam-se hipnotizados, brilhavam e procuravam-se desesperadamente tirando do foco as nossas filigranas profissionais. Isso era um forte indício de atração assim como suas pernas cruzadas, seus joelhos redondos, lisos e lustrosos, que apontavam diretos para mim quando sentou-se e afundou-se suavemente na poltrona colocando seu corpo bem defronte ao meu. Ajustou a barra da saia tentando cobrir um pedaço da coxa que, bondosa teimosia, decidira ficar descoberta. A saia tinha vida própria e, ainda que a puxasse e esticasse, as coxas reapareciam morenas e grossas. E, por mais que eu tentasse evitar, era impossível não admirar seus contornos e sua beleza. Até que ela cavou um novo fio de conversa:

--- E sobre a instalação da nova fábrica... já há um local definido?

Ora, esse assunto nem havia sido abordado na convenção, era irrelevante para a imprensa de tão distante do dia-a-dia da empresa. Tema apenas cogitado em reuniões internas e, talvez, vazado por

algum irresponsável. Só rumores. Boatos. Nada sério.
--- Olha, disse eu, não há nada nesse sentido e com essa crise financeira internacional (achei ótima essa minha sacada), essa escassez de crédito... então nem se fala. Pelo menos que eu saiba... Mas, havendo alguma novidade, com certeza eu entrarei em contato se isso for tão importante assim para seu jornal e para... Como é mesmo o nome da cidade onde fica...?

--- Taboquinhas... Mas não é cidade, apenas um subdistrito... Não, não era assim tão importante. Mas a região, com tanto espaço, tantos terrenos... sua comunidade ficaria muito honrada e orgulhosa em receber nossa nova planta fabril... se um dia isso acontecesse, é claro. Rimos. E seu riso era contagiante, belo, franco, luminoso. Ela gostava de mim, me desejava. Eu a queria, gostava dela. Não precisávamos mais de subterfúgios. Óbvio, seria conveniente um novo encontro, uma preparação, preliminares como a entrada sem graça e de gosto duvidoso do jantar, que eu já nem lembrava qual fora, mas o fato estava consumado. Encerrados os temas burocráticos, a enrolação social, mesmo porque já não havia mais nenhuma necessidade desses preâmbulos uma vez que já nos sentíamos íntimos, começamos a discorrer sobre amenidades mútuas e diversas: iniciando com Taboquinhas, o jornal, suas funções e evoluindo, sem rodeios, para hábitos e preferências pessoais entre tantas outras variáveis desse mesmo nível, fundamentais para desinibir e evocar a felicidade e o riso fácil dos primeiros encontros.

Logo de início descobrimos que tínhamos algumas coisas em comum e isso, ainda que tentássemos disfarçar, deixavá-nos mais alegres: o jornalismo, MPB, bons livros, filmes de suspense, esportes (não radicais que ela detestava e eu, mesmo que gostasse, teria passado a odiar a partir daquele momento), internet, alguma coisa de "rock and roll", escrever para "sites" e concursos literários. Alguns minutos depois percebemos que as coisas em comum, divina coincidência, eram bem mais comuns e pessoais: banhos quentes e prolongados, dançar (de preferência coladinhos e com os olhos fechados), dormir com dois travesseiros e pouca roupa (evitamos dar nomes às peças íntimas mas teríamos apreciado o erotismo resultante disso) e... bem... Aí então sorrimos um pouco, desviamos nossos olhares para o chão e, quando voltaram a se encontrar, falei de sopetão ignorando por completo a aliança de ouro na minha mão esquerda:

--- Puxa vida, acho que fomos feitos um para o outro! Oh, que frase estúpida! Que idiotice a minha! Isso é coisa que se fale numa hora dessas? E para uma deusa, ainda que de Taboquinhas? Tentei reparar:

--- Me desculpe, saiu sem querer... Ela então respondeu, olhando docemente para mim:

--- Não se preocupe. Eu também acho.

Não acreditei de imediato mas, no dia seguinte, estávamos almoçando. Quer dizer, a minha metade amante. A outra metade trabalhava e cumpria os deveres profissionais junto à imprensa e matrimoniais junto à família, ainda que fosse a outra em vias de constituição. Mesmo porque, apesar de enamorados e desejosos um do outro, ainda rodeávamos o tema de interesse recíproco, ou seja: cama, com assuntos da sua gloriosa gazeta e com o insustentável boato da construção da nova fábrica, sobre o qual, muito espertalhão, procurei mostrar fingido domínio com o fim de tirar algum proveito da situação. Então, entre um e outro gole d´água, uma mastigação mais lenta e polida, um toque do guardanapo nos cantos dos lábios, minha mão atravessou a mesa e, côncava, pousou sobre a dela, convexa. Os dedos abriram-se e entrelaçaram-se, quentes e úmidos.

Dali seguimos para um motel e foi uma selvageria. Tudo aquilo que estava acumulado desde a noite anterior brotou, jorrou, espremeu-se, confundiu-se, fundiu-se, separou-se e começou de novo numa onda avassaladora de calor, fúria, gozo e suor que não tinha fim. E essa minha metade enlouquecida, perdida e embaraçada entre os lençóis, e que eu já não sabia se eram os cinquenta por cento amante, o latifúndio marido ou ambos derretidos num cadinho, presos num sarcófago, repartia em êxtase as metades de Luísa ininterruptamente, demoradamente, violentamente, enquanto seu infinito e seus dois pedaços inseparáveis, incansáveis e receptíveis, mantinham a minha unidade perene e sua dualidade eterna, tenra e fascinante. Lascivos. Apaixonados. Deitado agora com Fatiminha, que adormecera colada ao meu corpo, e pensando nas delícias e prazeres desse primeiro encontro, senti meu pênis endurecer feito pedra, saudoso e peralta, mas de livre e espontânea vontade, e fiquei receoso de que ela acordasse, percebesse a situação e, com insinuações constrangedoras, interrompesse meus devaneios.

Nos encontramos outras vezes e eram sempre como se fosse a primeira. Conheci mais sobre a sua vida, íntima e profissional. Ela também. Contou-me sobre um seu companheiro, que não era nem marido, nem amante, nem casual e nem constante, não era namorado nem ex, uma coisa assim estranha, um amor antigo difícil de apagar mas que vinha se esgotando. Mais ainda depois de me conhecer. Às vezes ficavam juntos um tempo. Discutiam. Brigavam. Separavam-se. E voltavam para mais um recomeço. Os mesmos ciúmes, a mesma desconfiança, a intransigência azedando as doçuras do amor. Então, eu apareci. E ele sumiu. Agora era só minha. Ainda bem porque eu já sentia vontade de matá-lo, esquartejá-lo, expor seus pedaços nos postes de Taboquinhas para que servissem de exemplo a quem tentasse se aproximar de Luísa. Por seu lado ela ficava triste porque eu não era só dela. Mas compreendia. Quer dizer, eu acho: talvez falasse isso só da boca para fora para conservar a minha metade que, de fato, ainda que ela não soubesse com certeza, já lhe pertencia. Falou sobre a empresa, seu sonho de crescimento profissional, o MBA carésimo. Tocava no assunto da nossa nova fábrica, como se isso fosse uma verdade inadiável e da esperança, finalmente confessada, de que pudesse ser construída em seu rincão natal: acanhadinho, remoto, mas competente. Ah, Luísa, meu amor, se todos os seus conterrâneos se parecessem, no mínimo, com a unha do seu dedo mindinho, porque iguais a você não pode haver ninguém, sua Taboquinhas querida e adorada, da noite para o dia, se veria transformada em potência, uma nova China, um T no BricT, pré-sal à flor do mar, Vale do Placebo tupiniquim.

E eu também contei um pouco sobre minha vida. Parte ela já conhecia porque havia buscado informações (ah... nós os jornalistas), por baixo dos panos, com conhecidos e amigos comuns que, inocentes, foram abrindo o jogo, contando como eu era, quem eu era, esposa, filhos, entre outros assuntos fundamentais para a aproximação, conquista e para o dia-a-dia curto e ilegal de entrega e estardalhaço entre amantes. Falei sobre minha carreira profissional, meus objetivos e minhas expectativas para o futuro. Minha devoção à empresa. O pouco tempo com a família. Talvez uma mudança para o exterior. Quem sabe? Mas, em nenhum momento, apesar do carinho que eu vinha lhe dedicando, da paixão que eu demonstrara até então, e que com certeza eu sentia, não poderia pô-la em meus planos sem causar complicações desnecessárias as nossas vidas. Porém, não disse isso às claras porque poderia magoá-la e envenenar a relação. Ocorre que ela percebeu minha angústia, decifrou meus pensamentos e eu pude notar uma gota de dúvida e uma certa tristeza em seu rosto. Sentiu que eu estava dividido. Uma parte querendo-a de verdade e para sempre e sem saber como acompanhá-la. Outra parte inseparável de Fatiminha e das crianças e sem condições de conciliar os pedaços. Nossos encontros não poderiam ocorrer de outra forma: esporádicos mas estupendos; casuais e maravilhosos. Ficou um pouco desapontada mas não tínhamos outra saída.

Então, de repente, sem mais nem menos, ela não liga mais nem atende ao telefone. Nem o celular e nem o central da Gazeta Médica Metropolitana. Deixei recado na recepção e fiquei preocupado de verdade com o que pudesse ter acontecido, mas não recebi nenhuma ligação e nem retorno das mensagens que deixei gravadas correndo o perigo de me comprometer no futuro. Cheguei ao ponto, arriscando-me, de me perder nas ruelas de Taboquinhas e passar de carro diversas vezes defronte à empresa. Fiz plantão em frente a minúscula sede da Gamemet. Num desses dias lembrei, com um sorriso chocho de tesão recolhido, duma ocasião em que estávamos na cama, nus, olhando-nos enternecidos e brinquei com ela a respeito da abreviação do nome do jornal, Gamemet, da conotação de duplo sentido... Ela então, sem tirar os olhos dos meus, abriu as pernas devagarzinho, os joelhos levemente erguidos, estendeu os dois braços me convidando e sussurrou: --- O que é que você está insinuando? Lembro que mergulhei em seu corpo e afoguei-me em gozo. Um gozo Gamemet, gazeteiro e metropolitano. Enfim, nos plantões e incertas, manhã, tarde e noite, foram litros de café e quilos de pão de queijo, azias e dores de cabeça, numa lanchonete próxima ao sobrado, sede da empresa, fiscalizando como um detetive mal disfarçado a entrada e saída de pessoal e nem sinal de Luísa. Desaparecera. No princípio fiquei desesperado, desnorteado, sem saber o que fazer. Depois percebi que talvez fosse melhor assim. Cada um no seu canto, com a sua própria vida. Desisti. A rotina familiar então voltou, aprazível, tépida, e tentei esquecer Luísa. Passados alguns dias pensei ter conseguido mas não me dei conta que era só uma das minhas metades, inconsolável, tentando ludibriar a outra, saudosa e inconsequente.

Num desses dias fui chamado para uma reunião com o presidente da empresa e com o diretor de recursos humanos, na sala da presidência. Coisa séria pensei. E foi mesmo. Comunicaram-me que eu seria promovido e passaria a responder pela Diretoria de Assuntos Corporativos. Minha carreira profissional agora deslanchava. Entre outras atividades também passaria a participar das reuniões do conselho: a partir dali seria a voz e a cara da empresa; poder, glória e humildade, se é que esses valores são solúveis entre si. De imediato responsável pelo lançamento de uma nova família de produtos e, na sequência, para minha estupefação, assunto conduzido no mais completo sigilo, deveria comunicar à imprensa o início do processo de escolha da cidade que receberia nossa nova planta. Em decisão recentíssima os acionistas, grupo do qual agora eu fazia parte, haviam decidido por uma nova fábrica em razão da previsão de aumento do consumo de medicamentos nas classes C e D e pelo fato de nossas instalações e maquinários estarem ultrapassados: esses os motivos oficiais. Não poderíamos divulgar os fatos verdadeiros: premência em sair da metrópole em virtude dos altos percentuais dos impostos, custos salariais elevados, problemas com o sindicato da categoria, greves, piquetes, e necessidade de corte de pessoal. Assuntos, aliás, incluindo minha promoção, segredos absolutos da diretoria, até a nossa próxima convenção que, nessa mesma reunião, foi planejada para acontecer, e aconteceu, no dia hoje, um pouco mais cedo.

Agora estou aqui na minha cama, descansando do evento, Fatiminha abraçada a mim, as crianças dormindo, remoendo todos esses acontecimentos que passaram feito um turbilhão deixando minha vida muitas vezes de ponta cabeça e algumas, esparsas, com os pés no chão. Com tanto trabalho e novas responsabilidades quase não tive tempo para mim e para voltar a procurar Luísa. Dediquei-me à empresa e me esqueci dela pelo menos por um tempo. Na realidade esquecer é o modo mais simplório de dizer porque, quando começamos a relacionar os nomes das pessoas, entidades e empresas que deveriam ser convidadas para a convenção meus olhos, sôfregos e felinos, percorreram o banco de dados para ver se lá constava o seu nome e o da empresa. Que alívio! Na letra G aparecia Gazeta Médica Metropolitana - Gamemet. Porém, para meu desespero, seu nome não estava relacionado e nem o nome de nenhum responsável. Pedi à secretária que atualizasse as informações até a remessa dos convites e me mantivesse informado de todas as modificações. Procurei não demonstrar interesse por ninguém em particular. Questão de ética. Muito canalha eu. No fundo aguardava com ansiedade que ela repassasse um memorando interno informando, para meu alívio, que Luísa de Tal, compareceria à nossa convenção. Adoraria vê-la de novo. Ouvir sua voz. Tocá-la se possível. Agarrá-la de preferência e devorá-la, no sentido farmacológico, intoxicado e inflamado de desejo.

Faria promessas insanas com a veemência e altruísmo do agora novo diretor e membro do conselho, e tentaria cumpri-las por amor. Quem sabe levando a nova fábrica para Taboquinhas? Chegando com empregos sólidos para centenas de seus conterrâneos e, no bojo do progresso, fama, fortuna e prestígio para a região. Aumentando o IDH e o PIB do subdistrito que se transformaria, num primeiro momento, em distrito com o nome mais pomposo de Taboca-Mirim. Depois, à medida que se desenvolvesse, elevaríamos, eu e ela, o distrito à categoria de cidade batizando-a como Tabocas e, por fim, quando suplantasse todos os municípios da região, eu, como presidente da empresa e ela, com a força e a influência de seu grande jornal, proporíamos à Câmara de Vereadores que a cidade passasse a se chamar Santa Luísa, abençoada terra de lavores, carnes frescas e vegetais. O nobre bambu, produto farto e nativo das redondezas, passaria a ser discutido em Doha, item de segurança nacional, cotação na bolsa de futuros, "commodity" internacional. Vendido como cassetete para os EUA espancar a turma do Eixo do Mal, exportado para a produção de palitinhos de pegar yakissoba na China e sashimi no Japão e, ufa!, embarcados para a península hispânica com o fim de confeccionar, com tecnologia primeiromundista, arcos e flechas com que a espanholada poderia caçar brazucas entre vinhas e olivais. Quem sabe Luísa, além do perímetro da Gamemet, despontaria como uma nova liderança política, vereadora ou prefeita, porque votos, com sua inteligência, beleza e gostosura, não lhe faltariam. Eu a ajudaria no planejamento e implantação de sua inédita campanha. Marqueteira. Vitoriosa. Sua foto no saguão principal da prefeitura. Seu busto no paço municipal. Ah, seu busto. Seus seios redondos, bicudos. E eu ali no conforto daqueles montes macios, no meio da penugem minúscula do sexo, no vão da bunda, criando toda uma complexa estratégia de relacionamento, imagem e comunicação. Eminência parda do poder, amante nas sombras, sonhador. Confesso que pensei, esnobe, cínico e arrogante, como já convinha a um bom assessor político em seu nascedouro, até na minha própria estátua, bronze em vida, na praça principal de Santa Luísa: eu, de corpo inteiro, magnânimo, terno e gravata, cabelos penteados ao gel, olhar digno e altivo, com um microfone numa das mãos e o indicador da outra apontando para uma tela de "power point". Caindo na real, de verdade, um simples diretor. Esquentando o cargo. Um bosta. Abandonado. Na cama só o alento do corpo maternal de Fatiminha aquecendo-se junto ao meu, com seu braço laçando meu tórax e sua mão agarrando a gola do meu pijama. Ai!

Hoje no final da tarde iniciou-se a convenção. Muita gente. Diretores de hospitais, administradores de clínicas, professores, doutores, proprietários de redes de farmácia, médicos em geral, políticos, curiosos e a imprensa, sagrados coleguinhas. Eu estava feliz sem demonstrar os exageros da minha satisfação, mas com certeza a noite seria de êxitos. Nossas equipes haviam feito um excelente trabalho. Até o nome de Luísa fora confirmado, em ordem alfabética, com outros que acrescentei na lista só para despistar meu interesse direto. E a noite foi de festa e celebrações no mesmo hotel de luxo do último evento. Discursos, vídeos, agradecimentos, homenagens, meu novo cargo, a nova linha de produtos e, para alegria do noticiário midiático, o anúncio da busca da cidade que receberia nossa nova fábrica. De resto o mesmo filé ao molho madeira e sorvete de sobremesa: só que exigimos a presença maciça dos cogumelos (no jantar anterior enxergados à lupa) e, junto com o bolo aquecido, duas bolas de sorvete ao invés de apenas uma. Lembrei, então, das minhas metades: tão iguais e tão diferentes. Uma gelada lembrando-se de Fatiminha e a outra, quente, procurando Luísa pelo salão. Uma sólida abraçada a Fatiminha iniciando seu sono inocente e a outra, derretendo, imaginando nunca mais ver Luísa. Lá pelas tantas conjecturei que, mesmo que tivesse vindo, já teria ido embora com o seu par idiota. O que sempre fora sem nunca ter sido. O energúmeno. A besta quadrada. Desisti de esperar.

A noitada chegava ao seu final mas o barulho e a agitação persistiam. A banda musical ainda arranhava uns acordes e o vozerio, mais alto, pesado e arrastado sob o efeito dos diferentes álcoois, poluiam o ambiente e tornavam difícil entender e ser entendido. Mesmo assim os convidados faziam fila para cumprimetar os anfitriões: puxa-sacos de plantão, os amigos de verdade, os oportunistas disfarçados, políticos farejadores, lobistas, a gentinha do relacionamento e mais uma fauna divertida que sorria por nada. Torço para que tudo termine o mais rápido possível afim de me despedir dos colegas, voltar para casa e afogar minhas mágoas e meu desconsolo no aconchego do lar. Alguns sujeitos, ainda a minha volta, gesticulam, falam, prendem a minha atenção. Meu olhar vai para um lado e para o outro, procuro falar com todos. Vai saber o dia de amanhã?

De repente, no meio da gente toda, como se surgisse na bruma do nada, Luísa vem caminhando em minha direção. Firme, elegante e maravilhosa. Os olhares rebatem em seu corpo, em seu rosto, em suas pernas para, logo depois de sua passagem, voltarem-se para seus pares, suas rodas e reiniciarem as conversas, tosses e gargalhadas barulhentas. Luísa vem diretamente para mim e eu, que até há pouco, imaginava-me inteiro, as metades coladas, cicatrizadas, novamente me sinto fendido, repartido, amputado de mim: uma metade presa ao chão de tão apalermada e a outra querendo correr para ela como um menino perdido que acaba de encontrar a mãe. Luísa aproxima-se, abraça-me, uma das mãos segurando uma pequena bolsa e a outra pousada sobre meu ombro. Murmura, quase num sopro, algo que eu não entendo com clareza em razão do falatório geral e, sem me dar tempo para qualquer reação, afasta-se flutuando, ligeira e discreta como surgiu. Não tive condições de dizer nada. Paralisado. Quando tentei abrir a boca a roda de desconhecidos fechou-se a minha frente e ela desapareceu no meio deles.

Agora na cama, Fatiminha ao meu lado, penso que tive Luísa junto a mim e a deixei escapar. Também, no meio daquela multidão, teria sido impossível resgatá-la, segurá-la pelo braço, interromper seu caminho, pedir, implorar, sem que desse na vista de todos e sem comprometer a minha conduta pessoal, a ética e a postura que meu novo cargo já exigia e, sem dúvida, isso tudo em relação a ela também. Não podia ter feito outra coisa a não ser deixá-la partir. Mas, neste exato instante, neste quarto escuro, me pergunto, o quê disse ela naquele momento? Preciso, com urgência hemorrágica, recompor todos os detalhes, todos os passos, lembrar dos movimentos mais delicados, comparar as mais sutis reações, analisar o deslocamento do ar, os ruídos inaudíveis, a textura das roupas, o arfar do colo, o atrito das peles, o tremor dos lábios, o brilho dos olhos, a vibração da voz, a mistura dos perfumes: sem essas lembranças errarei solitário em nossos destinos porque nunca saberei de suas derradeiras palavras.

Desculpe Fatiminha mas eu tenho que continuar juntando os quadros dessa película caso contrário morro louco. Fique aqui comigo, abraçada, quietinha, e me deixe pensar.

Lembro que quando Luísa surgiu ela vinha firme em minha direção. As pessoas ao redor abriram caminho, olharam-na vorazes, olharam também para mim, disfarçaram e voltaram as suas conversas. Luísa achegou-se, com os lábios esboçando talvez um sorriso tímido de desculpas, de arrependimento, de saudades. Os olhos em dúvida. Tive a impressão que num determinado momento ela até olhou para o chão, chegou perto de mim, ergueu os braços com zelosa discrição, aproximou seu corpo do meu com extrema polidez, pousou socialmente uma das mãos em meu ombro e, atenta à devida distância profissional, ajeitou sua cabeça ao lado da minha para aquele beijo sonso e pasteurizado de salão e murmurou:

--- Parabéns...

Não, não é possível, não foram essas palavras. Não pode ser. O sussurro teve outra entonação caso contrário ela não se aproximaria como se aproximou. O sorriso, apesar de tímido, não foi tão profissional assim. Foi uma declaração mais pesada, mais contundente. Novamente recomponho seus passos e a vejo chegando, as pessoas afastam-se, o filme roda mais rápido nas passagens que não me interessam e ela está quase junto a mim. Dessa vez percebo um olhar mais intenso. Não sorria, eu acho, mas não quero ter certeza. Um corpo mais decidido. Não, ela não havia olhado para o chão, deu para recordar direitinho. Lembro que abriu os braços como todas as outras mulheres que me cumprimentaram nesta noite, vejo a bolsinha numa das mãos, preta, da cor do vestido, justo. Uma de suas mãos, pudica e reticente, fechou-se sobre meu ombro. E encostou o seu corpo ao meu mas me pareceu que havia uma densa e invisível camada de separação entre eles. Como se fosse um recado de desesperança. Avançou sua cabeça junto a minha e tive a impressão que nossos rostos se tocaram nervosos, indecisos, e seus lábios me disseram:

--- Adeus...

Foi tamanho o terror ao sentir o impacto dessa palavra dentro de mim que meu corpo estremeceu, um pulo como se fosse um pedaço fatiado e ainda vivo de uma rã. Como se eu tivesse recebido uma estocada. Tanto que Fatiminha assustou-se, mexeu-se e quase acordou de seu sono. Procurei manter a calma controlando a respiração afim de não despertá-la de vez. Isso interromperia a recomposição da minha jornada. Fatiminha acomodou-se, ajustou a cabeça sobre meu ombro, arrumou o braço por cima do meu tórax e agarrou com mais firmeza a gola do meu pijama: modo inconsciente de me manter preso a ela. Como fazia todas as noites repousou também uma das pernas sobre as minhas coxas. Era assim que chegava e assim que recebia o seu sono mais profundo.

Pronto. Estava a postos para recomeçar porque, em sã consciência, não foi um adeus que ela me disse. Luísa não faria isso. Não dessa forma. Não aceitei e não aceitaria nem em pensamento. Devo ter perdido algum detalhe, algum toque imperceptível, algum sinal subliminar. Não poderia ser adeus. Depois de tudo que fizemos juntos, dos nossos encontros, de nossos prazeres, de nossas línguas enroscadas, ela não poderia aparecer dessa forma e dizer adeus, pura e simplesmente. Não era do seu feitio. Teria mil maneiras de separar-se mas não assim. Então foi o quê?

Mais uma vez vou em busca dos mínimos detalhes, dos gestos apenas prenunciados, do mais leve rubor, do brilho mais apagado, do sorriso mais débil, daquilo que poderia me dar a tranquilidade para dormir em paz com as palavras efetivamente ditas. Expurguei todos os coadjuvantes do meu filme. Limpei o salão de mesas, cadeiras, quadros, toalhas, copos, talheres, garçons, travessas e cogumelos. Despedi o presidente, os demais diretores, convidados, amigos e inimigos. Encarcerei os políticos e exilei os lobistas. Expulsei a banda a tapas. Os puxa-sacos a pontapés. Ficamos apenas Luísa e eu. Ela caminhava e seus pés não tocavam o carpete, usava um vestido preto, justo, acima dos joelhos maravilhosos. Numa das mãos uma bolsa preta. Estava deslumbrante. Linda. Estonteante. De longe já me oferecia um sorriso discreto, porém, bastante evidente. De arrependimento? De paixão? De desculpas? De esperança? Quantos iguais a esse eu beijei em nossas tardes? Um pequeno traço dos dentes branquíssimos aparecendo entre os lábios vermelhos em contraste com os belos olhos azuis.

Aproximou-se e seu sorriso aumentou com um acento mais intenso, mais puro, mais livre, mais íntimo, porque via no meu rosto a recíproca. Seus olhos brilhavam mais e mais à medida que a felicidade transbordava em mim. Abriu seus braços para a oferta sincera de todo o seu ser e que me convidavam para abraçá-la também. Encostou seu corpo ao meu e senti o volume dos seus seios contra meu peito. Nada entre nós. Colocou sua mão sobre o meu ombro, contraiu-a pressionando-o de leve mas puxando-me para si. O outro braço com a bolsa apoiou-se às minhas costas. Vi seus olhos desfalecendo tranquilos, na calmaria do reencontro, quando ela levava sua cabeça para colar-se a minha. E pude apreciar seu sorriso pleno de satisfação e saudades esconder-se ao lado do meu rosto. Abracei-a com força retribuindo o seu carinho. Sua face quente e macia encostou-se a minha, deslizando suavemente, e senti seus lábios úmidos roçarem meu rosto até alcançarem a base do meu ouvido. Então um sussurro límpido e inconfundível brotou na escuridão da minha noite:

--- Eu te amo, murmurou Fatiminha partindo de vez para o seu sétimo sono.

--- Também te amo, responderam, quase adormecidas, cada uma das minhas metades.
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