Atualização nº 187 - ESCRAVO
BIOGRAFIA
OLHANDO O MAR
Sharon Ratis

Não sei precisar o momento exato em que me tornei tua escrava. Penso nisso quase todos os fins de tarde, desde que me mudei para cá. Não. Não me mudei. Minha condição me conduziu até aqui. Para ficar à tua espera, olhando esse mar azul.

Às vezes, as tardes são agradáveis, quentes. Encho um copo com gelo e uísque e fico pensando em ti enquanto observo o pôr-do-sol. Fico me perguntando se aqui, tão perto de mim, estará você também observando o mesmo sol se deitar.

Não sei dizer se a escravidão se deu no primeiro contato, no primeiro ou segundo encontro. Você não me tomou sua escrava de uma vez. Foi devagarzinho, não é ? Por isso não me lembro. Todos os dias, um pouquinho. Sem pressa. Como quem acende um cigarro e fica olhando a chama consumir o palito sem deixar queimar os dedos. Faço isso sempre. Você brinca comigo como eu brinco com a chama. Deixo chegar bem perto, mas quando sinto o calor próximo à pele, fico com medo. Como você. E apago a chama...

Lembro-me das primeiras conversas. Tão inocentes, meu pai. Espera, é mentira. Isso é mentira. Nunca foram inocentes. Nem de minha parte, nem da sua. Não sei se você já tinha a intenção de. Desde a primeira vez. Você não tinha muita paciência, disso eu me lembro, porém insistia mesmo assim. Mas não era aquela insistência óbvia dos vendedores ou de quem deseja ser aceito a todo custo. Você era tão sutil que insistia me fazendo ir atrás de você. Como se a única interessada fosse eu. Me obrigou a gostar de você, praticamente. Eu queria, mas não sabia ou fingia não saber ou não devia querer ou pensei que você não me alcançaria. Será que foi nesse instante que você me colocou os primeiros grilhões ? Se foi, não percebi. Você os deixou frouxos para que eu me acostumasse a tê-los sem percebê-los.

Hoje a tarde está muito fria. Levanto e me enrolo numa manta de lã sintética, pois não uso lã de verdade e sei que você acha isso uma viadagem. Tenho a sensação de que olho o Pacífico - por causa do vento gelado. Sabia que na Califórnia há um vento que perturba tanto as pessoas que se elas cometerem um homicídio, são perdoadas ? Culpa do vento. Estou tentando, mas não consigo me lembrar do nome deste vento. Você sabe qual é, não sabe ? Você sempre sabe tudo. Olho para você e percebo que, a teu lado, sou tão menina, sei tão pouco. Ou nada sei. Você me parece tão grande, tão inteligente, tão superior, tão inatingível.

Mesmo fazendo frio, o sol brilhou o dia todo. Agora começa a se pôr. Deixo a secretária eletrônica ligada, assim, se você telefonar, poderei ouvir. Tentar não atender o teu chamado, mas sempre cedo. É nessa hora que sinto os grilhões apertados. E vou ao teu encontro.

Depois volto sozinha para casa sentindo essa tristeza doce tão peculiar de quem é possuído sem possuir. Sento-me aqui e fico ouvindo o mar. Até a próxima vez.

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