Atualização nº 187 - ESCRAVO
BIOGRAFIA
DONA MARIA
Maria Luísa Rocha

Levantava bem cedinho, antes das seis horas. Com os olhos ainda pregados de noite mal dormida, ia até o fogão colocar a chaleira com água para ferver e coava o café. Só depois do primeiro gole, sem açúcar, bem forte, ela acordava para o novo dia. Mudava o pijama surrado, vestia uma roupa também gasta, larga e confortável e voltava para a cozinha remexendo a louça dentro da pia, separando os talheres dos pratos; as panelas ficavam por último por causa da gordura. Recolhia o lixo e descia as escadas silenciosamente numa tentativa de evitar encontros com vizinhos. Tinha que colocá-lo no passeio antes das oito horas, já que os lixeiros passavam muito cedo. Subia os três lances de escada com alguma dificuldade. Tomava mais uma xícara de café, agora acompanhado de uma fatia de pão com margarina. Ultimamente cismou de ingerir uma colher de sopa de azeite com o estômago vazio. Mania mesmo, adquirida depois de ver uma reportagem na televisão enaltecendo os milagres do azeite para as artérias e o coração. Mais um pouquinho de café, talvez para espantar a preguiça de encarar o que inevitavelmente lhe traria o novo dia .

Estendia os lençóis, pegava a roupa suja dos filhos - muitas vezes esparramada no chão desde o dia anterior - colocava tudo na máquina de lavar. Recordava-se sempre dos seus vinte anos: na casa onde fora morar após o nascimento do primeiro filho não havia sequer um tanque. Com os braços magros e sem força, numa bacia esmaltada, lavava infindáveis fraldas, colocando bastante água sanitária para disfarçar o cheiro de cocô e urina que ia se impregnando pelo serviço mal feito. Aliás a água sanitária virou sua grande amiga ao longo dos anos: auxiliava a clarear as mamadeiras, desinfetava os legumes e folhas do almoço, fazia desaparecer formigas de açúcar disseminadas pela cozinha.

Lá pelas nove horas, lavava o feijão e punha para cozinhar na panela de pressão, temperando-o com alho e sal. A carne do almoço também precisava ser adiantada o mais cedo possível. Com uma faca bem afiada, fazia cortes precisos, observando a disposição das fibras para não endurecê-la. Tratava de escolher outra panela mais resistente para a primeira fase, a fritura. Corria e desligava a máquina de lavar: a roupa precisava ficar um tempo de molho. Voltava para os quartos com a vassoura na mão. Varria rapidamente, ao mesmo tempo em que recolhia copos e organizava coisas espalhadas, sempre de olho nas duas panelas. De vez em quando, distraía-se e alguma coisa queimava. Era um desespero ter que arear a panela queimada e preparar tudo de novo, com o coração acelerado pela pressa.

Agora era a vez da louça. Enquanto a torneira jorrava a água lavando infindáveis pratos, copos, colheres, facas e xícaras, seus pensamentos voavam para lugares tranqüilos, cheios de vegetação e passarinhos. Adorava se imaginar caminhando horas a fio por atalhos em uma floresta densa, sozinha e livre. Geralmente o telefone tocava e a arrancava do devaneio. Era engano ou era o marido pedindo para passar a camisa que iria usar à tarde, em uma reunião importante. Continuava a preparar a carne, vigiava o cozimento do feijão e voltava a ligar a máquina. Agora deveria cuidar do cachorro: juntar o cocô, trocar a água, dar uma volta com ele no quarteirão. O cão ficava feliz, compensando o precioso tempo perdido. Subia as escadas já sem respiração e ia direto para a máquina de lavar: tinha que tirar e estender a roupa já lavada senão podia secar amarrotada, dificultando para passar.

Novamente na cozinha, separava as verduras para a salada, descascava-as e picava tudo, tomando cuidado para não cortar o dedo. Ás vezes, tomava mais café, agora frio e sem graça. Pouco importava. Era só mais um precioso momento e sabia que tinha que aproveitá-lo. Enxugava a louça com o pano de prato desbotado pela água sanitária, lembrando-se da mãe, já falecida. Ela dizia que, se fosse contar o número de pratos que já lavou e os que ainda estavam por ser lavados, o resultado seria aterrador, esmagando qualquer ânimo e trazendo depressão. O correto seria permanecer no presente, agradecendo a Deus pelas mãos e pela saúde que lhe permitiam trabalhar naquele dia. Passado e futuro não existem, ela ensinava sempre com muita sabedoria aprendida em livros espíritas e de auto-ajuda.

A hora do almoço estava chegando e os filhos e o marido iriam abrir a porta, com fome de lobo e pouca paciência. Ai se porventura a carne ficasse salgada ou o feijão meio duro! Comentários ferinos iriam estalar em seu ouvido como o chicote do feitor. Alguma lágrima furtiva poderia escorrer pelo rosto avermelhado, mas ela disfarçaria, dizendo que era culpa da cebola cortada há pouco.

Após o almoço, um descanso era permitido, talvez meia hora. Novamente os pratos sujos, os talheres e as panelas exigiam sabão e água. Ela colocava o avental de plástico, suava em bicas e lavava tudo, resignadamente. Às vezes, ficava um cheiro de ovo em algum copo ou até uma mancha de batom de uma das filhas grudava na xícara. Reclamações surgiam com facilidade e só lhe restava lavar de novo. O jeito era apelar para a sua água sanitária que estava sempre por perto.

O banheiro reclamava limpeza. Tinha que enfrentá-lo com rodo e desinfetante, lavar o vaso, estender as toalhas para secar ao sol. Lá pelas três horas precisava sair para pagar alguma conta e comprar pão ou qualquer coisa que estava sempre faltando. Teria que começar a se preocupar com o jantar. Quando sobrava comida do almoço, era ótimo: fazia um mexido com ovos fritos, picava uns tomates e pronto, estava tudo resolvido. Mas quando isto não acontecia, lá ia ela de novo para o fogão preparar alguma coisa, uma macarronada, uma sopa, um empadão de sobras. Sua família era grande e o apetite maior ainda. Chegavam tarde, cansados e desanimados, querendo apenas comer para se esparramarem na cama e ver televisão.

Após o jantar, ela voltava ainda mais uma vez para o fogão, limpava um pouco, lavava alguns copos, juntava o resto dentro da pia, separando os pratos e os talheres das panelas engorduradas para o dia seguinte.

Já era noite alta quando tomava um banho morno, enfiava o pijama e debruçava-se na janela por alguns minutos, respirando o vento fresco da noite. E de olhos ainda abertos sonhava com vales distantes, onde cavalos corriam livres em disparada por prados verdejantes. Quem sabe se, quando morresse, iria para um lugar assim tão lindo, sem ninguém, sem nada para fazer, a não ser olhar a beleza da natureza e apreciar o cantar do vento...

Fechava a janela com cuidado para não acordar o marido que já roncava, ia até a cozinha preparar um chá de melissa. Recentemente escutou que era bom para insônia. Enquanto as folhas ficavam em infusão, roubava uma canequinha de pinga que o marido comprara e tomava um gole para sentir algum fogo descer pela garganta, numa tentativa de esquentar o coração amortecido.

Voltava para o quarto, ajeitava o despertador. Já deitada, imóvel para não incomodar o marido, tentava balbuciar alguma pequena oração, surpreendida por constatar que já não sabia mais rezar.

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