Atualização nº 187 - ESCRAVO
BIOGRAFIA
SEM RUMO
Eva Ibrahim

Os últimos raios de sol se punham por detrás das árvores e as pessoas caminhavam em silêncio pelas alamedas do cemitério. Mário saiu quando já não havia ninguém, sentou-se ao volante do automóvel e com os olhos cheios de lágrimas recostou a cabeça; não podia dirigir naquele estado. Era emoção demais, acabara de enterrar seu grande amor; a mulher de sua vida. Ficara mais um pouco, relutava em deixar o local. Havia um pedaço de si embaixo daquela terra; aquele lugar feio e triste, agora, guardava o corpo cansado de sua esposa. Ele também estava morto por dentro, ninguém entendia isso; estava entorpecido. Recebia os pêsames e nem prestava atenção em quem apertava sua mão, apenas agradecia, como se fosse um "robô".

O dia se tornara noite assim que Simone se rendeu á doença e a morte a levou. Mário tentou impedir, sacudiu seu corpo, gritou seu nome, mas a mulher foi ficando gelada, mole e depois dura, em rigidez cadavérica. Chamaram aquilo de morte, uma transformação terrível, um corpo sem vida; diziam que descansou e agora? O que seria dele? Vivera em função dela nos últimos meses, estava sem rumo; não queria voltar para casa. Tinha que ser forte, pois, havia uma criança esperando por ele. A pequena Vanessa tinha apenas seis anos e precisava muito do pai. Ele também queria colo, estava sofrendo muito; a sensação era de completo abandono.

Há oito anos, Mário fez uma viagem á capital, era o casamento da prima Elisa e lá conheceu Simone. Uma morena, alta, charmosa e sorridente que o enfeitiçou rapidamente; quando voltou já estava apaixonado. Durante aquele ano fez inúmeras viagens para ver seu amor e os dois resolveram ficar juntos para sempre. Casaram-se e algum tempo depois, tiveram uma filha, que ultimamente ficara de lado, aos cuidados da avó. A mãe ficava muito tempo no Hospital e o pai a acompanhava.

Um dia, quando Simone tomava banho encontrou um pequeno caroço no seio direito; ficou preocupada e mostrou ao marido. Foram ao médico e este os aconselhou a procurar um especialista em Mastologia, que após uma biópsia diagnosticou um câncer de mama. O susto foi grande, Mário ficou apavorado, consultou outros médicos com a esperança de ter havido um engano, mas era verdade, sua mulher estava com um câncer agressivo e de difícil cura. Foi o início de uma grande luta.

Há seis meses foi retirada a mama direita de Simone, que apesar de abalada sorria dizendo que se livrara de um grande mal. Mário permanecia ao seu lado lhe dando forças, dizia que seu amor continuava o mesmo; nada podia diminuir seus sentimentos. Com o início da quimioterapia o casal acreditava que ficariam livres daquele fantasma.

As primeiras aplicações foram feitas e Simone passou mal a ponto de precisar ficar internada no Hospital. A mulher vomitava sem parar, a cirurgia doía muito e seu braço estava inchado. Foram retirados os linfonodos da axila para impedir a progressão da doença, mas como ocorre em muitos casos, o braço direito ficou comprometido com linfedema. Estava desanimada e Mário pediu um afastamento do serviço, era servidor público, para ficar com ela. Seria sua sombra ou seu escravo, não importava, queria vê-la bem.

Após a quarta sessão de quimioterapia a mulher definhava, estava bastante enfraquecida e seus cabelos começaram a cair. Andava amparada pelo marido, não podia fazer nenhum tipo de serviço e sua aparência era de uma flor murcha; estava perdendo o brilho. Quando começava a se erguer da última quimioterapia, vinha outra e ela caia de cama novamente ou ficava internada por vários dias.

Um dia Mário a surpreendeu olhando no espelho e chorando, a cena o comoveu muito. Retirou o espelho da parede e escondeu os demais, não queria que a mulher sofresse olhando sua aparência debilitada pela doença. Comprou uma peruca, mas ela preferia um turbante, dizia que era mais prático e logo nasceriam novos cabelos. Ele concordava com tudo e tentava manter as aparências, mas já tinha sido alertado pelos médicos que a cura era quase impossível; lutaria até o final.

Dois meses se passaram e quando Mário foi fazer o curativo na ferida cirúrgica que ainda não estava totalmente fechada, notou uma área avermelhada e algumas bolhas se formando. Não disse nada á mulher, precisava procurar o médico, estava com um mau pressentimento. Simone tinha consulta no Ambulatório da dor e ele iria tirar suas dúvidas, temia a volta da doença.

O médico foi categórico, estavam perdendo a luta, a doença ganhava força. Continuariam com o tratamento, mas não havia esperanças. O homem saiu dali querendo desaparecer, não poderia contar á ninguém e muito menos á Simone. Faria tudo por ela, ficaria noite e dia vigiando e lhe dando os remédios para que não sentisse dor.

Ao menor movimento da mulher ele sentava na cama, pronto para servi-la; era seu escravo, por vontade própria e por saber da gravidade da situação. Amava aquela mulher de todo coração e não podia imaginar sua vida sem ela. Ela confiava nele cegamente e ele assumia todos os problemas, sofrendo muito com isso. Mário guardava para si as incertezas futuras e o medo que a situação provocava.

Em um mês a ferida abriu formando pontos de infecção, bolhas e pequenas feridas. A outra mama já tinha sinais da doença, estava endurecida e avermelhada. Simone perguntava ao marido sobre a opinião do médico e ele dizia que estava indo bem, era assim mesmo. Lentamente ela ia perdendo as forças e parecia não se importar com mais nada; vivia deitada e dependia de Mário para sua higiene e alimentação. O homem se desdobrava e quando ela adormecia ele chorava; seu amor estava indo embora.Da moça bonita que ele amava restava muito pouco; sem cabelos, pálida como um papel e com o corpo inchado parecia ter envelhecido dez anos.

No quinto mês começou a falta de ar, ela adormecia semi-sentada; estava com derrame pleural. A doença invadira órgãos vitais, o fim estava próximo. Foi internada novamente e retiraram líquido de seus pulmões, aliviando a dispnéia. Mário a levou para casa, sabia que logo o deixaria. Simone vivia a base de morfina, tinha dores horríveis, gemia muito, mas não reclamava. O marido tentava animá-la, sem êxito; ela parecia não se importar com mais nada. Entregara-se á doença, suas forças estavam desaparecendo a olhos vistos.

No domingo ele percebeu que algo estava errado, a mulher vomitava sem parar, agora ele tinha que carregá-la; Simone não andava mais. Ele a mantinha limpa e com os curativos trocados; cuidava com amor e carinho. Nada melhorava a situação e Mário a levou ao Hospital onde ficou internada.

Os últimos dias foram terríveis, o marido passou sentado na poltrona ao lado de sua cama. Simone estava no oxigênio e não se alimentava mais. Estava sempre vomitando e recusava a alimentação. Era cuidada na cama e vivia sonolenta por causa dos medicamentos. Vez ou outra procurava o marido com os olhos e lhe dava a mão, depois adormecia novamente. Ás vezes perguntava da filha e da mãe, depois esquecia, estava confusa, perdera a noção do tempo.

Foi na madrugada do sábado que ela se entregou e disse ao marido que não agüentava mais. Abraçados choraram muito, os dois sentiam que a separação estava próxima. Com muita serenidade ela pediu que ele chamasse o padre para lhe dar a benção. O reverendo veio, ela o acompanhou na bênção e depois de algumas horas, fechou os olhos e apagou.

Mário estava ali, no automóvel, chorando e pensando no vazio estabelecido. Sua escravidão terminara, estava livre daquele sofrimento. Uma liberdade muito temida; agora era escravo do destino e da solidão. Um homem sem rumo, escravo de muitas lembranças que ficara para trás.

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