Os
últimos raios de sol se punham por detrás das árvores
e as pessoas caminhavam em silêncio pelas alamedas do cemitério.
Mário saiu quando já não havia ninguém, sentou-se
ao volante do automóvel e com os olhos cheios de lágrimas
recostou a cabeça; não podia dirigir naquele estado. Era
emoção demais, acabara de enterrar seu grande amor; a mulher
de sua vida. Ficara mais um pouco, relutava em deixar o local. Havia um
pedaço de si embaixo daquela terra; aquele lugar feio e triste,
agora, guardava o corpo cansado de sua esposa. Ele também estava
morto por dentro, ninguém entendia isso; estava entorpecido. Recebia
os pêsames e nem prestava atenção em quem apertava
sua mão, apenas agradecia, como se fosse um "robô".
O dia se tornara noite assim que Simone se rendeu á doença
e a morte a levou. Mário tentou impedir, sacudiu seu corpo, gritou
seu nome, mas a mulher foi ficando gelada, mole e depois dura, em rigidez
cadavérica. Chamaram aquilo de morte, uma transformação
terrível, um corpo sem vida; diziam que descansou e agora? O que
seria dele? Vivera em função dela nos últimos meses,
estava sem rumo; não queria voltar para casa. Tinha que ser forte,
pois, havia uma criança esperando por ele. A pequena Vanessa tinha
apenas seis anos e precisava muito do pai. Ele também queria colo,
estava sofrendo muito; a sensação era de completo abandono.
Há oito anos, Mário fez uma viagem á capital, era
o casamento da prima Elisa e lá conheceu Simone. Uma morena, alta,
charmosa e sorridente que o enfeitiçou rapidamente; quando voltou
já estava apaixonado. Durante aquele ano fez inúmeras viagens
para ver seu amor e os dois resolveram ficar juntos para sempre. Casaram-se
e algum tempo depois, tiveram uma filha, que ultimamente ficara de lado,
aos cuidados da avó. A mãe ficava muito tempo no Hospital
e o pai a acompanhava.
Um dia, quando Simone tomava banho encontrou um pequeno caroço
no seio direito; ficou preocupada e mostrou ao marido. Foram ao médico
e este os aconselhou a procurar um especialista em Mastologia, que após
uma biópsia diagnosticou um câncer de mama. O susto foi grande,
Mário ficou apavorado, consultou outros médicos com a esperança
de ter havido um engano, mas era verdade, sua mulher estava com um câncer
agressivo e de difícil cura. Foi o início de uma grande
luta.
Há seis meses foi retirada a mama direita de Simone, que apesar
de abalada sorria dizendo que se livrara de um grande mal. Mário
permanecia ao seu lado lhe dando forças, dizia que seu amor continuava
o mesmo; nada podia diminuir seus sentimentos. Com o início da
quimioterapia o casal acreditava que ficariam livres daquele fantasma.
As primeiras aplicações foram feitas e Simone passou mal
a ponto de precisar ficar internada no Hospital. A mulher vomitava sem
parar, a cirurgia doía muito e seu braço estava inchado.
Foram retirados os linfonodos da axila para impedir a progressão
da doença, mas como ocorre em muitos casos, o braço direito
ficou comprometido com linfedema. Estava desanimada e Mário pediu
um afastamento do serviço, era servidor público, para ficar
com ela. Seria sua sombra ou seu escravo, não importava, queria
vê-la bem.
Após a quarta sessão de quimioterapia a mulher definhava,
estava bastante enfraquecida e seus cabelos começaram a cair. Andava
amparada pelo marido, não podia fazer nenhum tipo de serviço
e sua aparência era de uma flor murcha; estava perdendo o brilho.
Quando começava a se erguer da última quimioterapia, vinha
outra e ela caia de cama novamente ou ficava internada por vários
dias.
Um dia Mário a surpreendeu olhando no espelho e chorando, a cena
o comoveu muito. Retirou o espelho da parede e escondeu os demais, não
queria que a mulher sofresse olhando sua aparência debilitada pela
doença. Comprou uma peruca, mas ela preferia um turbante, dizia
que era mais prático e logo nasceriam novos cabelos. Ele concordava
com tudo e tentava manter as aparências, mas já tinha sido
alertado pelos médicos que a cura era quase impossível;
lutaria até o final.
Dois meses se passaram e quando Mário foi fazer o curativo na ferida
cirúrgica que ainda não estava totalmente fechada, notou
uma área avermelhada e algumas bolhas se formando. Não disse
nada á mulher, precisava procurar o médico, estava com um
mau pressentimento. Simone tinha consulta no Ambulatório da dor
e ele iria tirar suas dúvidas, temia a volta da doença.
O médico foi categórico, estavam perdendo a luta, a doença
ganhava força. Continuariam com o tratamento, mas não havia
esperanças. O homem saiu dali querendo desaparecer, não
poderia contar á ninguém e muito menos á Simone.
Faria tudo por ela, ficaria noite e dia vigiando e lhe dando os remédios
para que não sentisse dor.
Ao menor movimento da mulher ele sentava na cama, pronto para servi-la;
era seu escravo, por vontade própria e por saber da gravidade da
situação. Amava aquela mulher de todo coração
e não podia imaginar sua vida sem ela. Ela confiava nele cegamente
e ele assumia todos os problemas, sofrendo muito com isso. Mário
guardava para si as incertezas futuras e o medo que a situação
provocava.
Em um mês a ferida abriu formando pontos de infecção,
bolhas e pequenas feridas. A outra mama já tinha sinais da doença,
estava endurecida e avermelhada. Simone perguntava ao marido sobre a opinião
do médico e ele dizia que estava indo bem, era assim mesmo. Lentamente
ela ia perdendo as forças e parecia não se importar com
mais nada; vivia deitada e dependia de Mário para sua higiene e
alimentação. O homem se desdobrava e quando ela adormecia
ele chorava; seu amor estava indo embora.Da moça bonita que ele
amava restava muito pouco; sem cabelos, pálida como um papel e
com o corpo inchado parecia ter envelhecido dez anos.
No quinto mês começou a falta de ar, ela adormecia semi-sentada;
estava com derrame pleural. A doença invadira órgãos
vitais, o fim estava próximo. Foi internada novamente e retiraram
líquido de seus pulmões, aliviando a dispnéia. Mário
a levou para casa, sabia que logo o deixaria. Simone vivia a base de morfina,
tinha dores horríveis, gemia muito, mas não reclamava. O
marido tentava animá-la, sem êxito; ela parecia não
se importar com mais nada. Entregara-se á doença, suas forças
estavam desaparecendo a olhos vistos.
No domingo ele percebeu que algo estava errado, a mulher vomitava sem
parar, agora ele tinha que carregá-la; Simone não andava
mais. Ele a mantinha limpa e com os curativos trocados; cuidava com amor
e carinho. Nada melhorava a situação e Mário a levou
ao Hospital onde ficou internada.
Os últimos dias foram terríveis, o marido passou sentado
na poltrona ao lado de sua cama. Simone estava no oxigênio e não
se alimentava mais. Estava sempre vomitando e recusava a alimentação.
Era cuidada na cama e vivia sonolenta por causa dos medicamentos. Vez
ou outra procurava o marido com os olhos e lhe dava a mão, depois
adormecia novamente. Ás vezes perguntava da filha e da mãe,
depois esquecia, estava confusa, perdera a noção do tempo.
Foi na madrugada do sábado que ela se entregou e disse ao marido
que não agüentava mais. Abraçados choraram muito, os
dois sentiam que a separação estava próxima. Com
muita serenidade ela pediu que ele chamasse o padre para lhe dar a benção.
O reverendo veio, ela o acompanhou na bênção e depois
de algumas horas, fechou os olhos e apagou.
Mário estava ali, no automóvel, chorando e pensando no vazio
estabelecido. Sua escravidão terminara, estava livre daquele sofrimento.
Uma liberdade muito temida; agora era escravo do destino e da solidão.
Um homem sem rumo, escravo de muitas lembranças que ficara para
trás.
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