Atualização nº 187 - ESCRAVO
BIOGRAFIA
JOGAVAM CAXANGÁ
E. Rohde

No dia do meu aniversário de nove anos, fugi de casa. Peguei o dinheiro que minha vó me deu de presente, juntei com o que ela me dera no natal e fui para a rodoviária enquanto minha mãe dormia a sesta, antes dos convidados começarem a chegar.

Pelas minhas contas, trezentos cruzeiros deveriam bastar. No meu Atlas da escola, Manaus distava trinta centímetros do Rio, e o Rio, seis da minha cidade. Se uma passagem até o Rio custava cinquenta cruzeiros, então do Rio até a amazônia devia custar uns duzentos e cinquenta. Eu tinha cento e cinquenta. Dava para a primeira passagem e ainda sobravam cem, que eu usaria no Cassino da Urca para levantar o que faltava. Na minha cabeça, era um plano perfeito.

Naquela época ainda não tinham construído a rodoviária nova. A velha era uma lojinha com dentro um guichê de passagens e umas cadeiras contra a parede. Como estava fechada para o almoço, fui no boteco ao lado tomar uma Coca enquanto esperava. Um marinheiro gordo, que estava sentado com um colega em uma mesa na calçada, me chamou para perto e puxou conversa. Perguntou onde estava a minha mãe e eu disse que em casa.

- Ela sabe onde você está?

- Não, eu fugi de casa. Tô indo para a amazônia caçar animais selvagens e ficar rico vendendo as peles. Tenho cento e cinquenta cruzeiros para a passagem.

Vi nos olhos dele que estava impressionado. Não sabia se pela minha bravura ou pela minha riqueza. O outro marinheiro falou:

- Isso é muito dinheiro, mas não chega para ir até o Norte. A amazônia fica longe.

- Sei disso.

Contei como planejava conseguir o resto do dinheiro. O gordo deu uma gargalhada:

- Acho que você nem tinha nascido quando fecharam o Cassino da Urca.

Aí o outro puxou uma cadeira para eu sentar:

- E quem precisa de cassino? Você já jogou Escravos de Jó a dinheiro?

Me deu um maço de cigarros e explicou as regras:

- Cada um bota cinco cruzeiros. Quem errar, cai fora. O último que sobrar leva a mesa e o jogo recomeça do início.

Me pareceu muito natural aqueles homens grandes com fardas de Pato Donald passando objetos ao redor da mesa e cantando lá-lalalá, lalá-lalá-lalá. Afinal, jogava-se a dinheiro e o que se passava eram cigarros.

Partiu a primeira rodada e logo eu errei. Cantei "Deixa o Zé Pereira ir já" em vez de "Deixa o zambelê ficar". Na segunda rodada, errei porque não sabia que depois do "zigue-zigue-zá" se faz um giro em sentido contrário. A regra profissional era bem diferente de como nós jogávamos em casa.

Não demorou muito para eu perder tudo. Implorei que me deixassem jogar mais uma rodada, a crédito, e eles consentiram. Eu ainda achava que podia dar uma lavada neles, recuperar o meu dinheiro e ainda limpar eles do último centavo do soldo que levavam para a família. Claro que perdi.

Nessa hora os dois se levantaram da mesa e o gordão disse:

- Agora você vai nos mostrar onde é a sua casa que nós vamos cobrar a dívida do seu pai.

Me pegaram pelo braço e me arrastaram pela rua, eu chorando, dizendo que faria qualquer coisa, mas que pelo amor de Deus não envolvessem minha família. Mesmo assim ia mostrando o caminho.

Chegando na frente de casa o marinheiro perguntou:

- É aqui mesmo que você mora?

Fiz que sim com a cabeça.

- Então vamos já liquidar essa questão.

Entrou pelo portão e foi tocar a campainha. Minha mãe atendeu.

- Meu filho, por onde você andava? O que aconteceu?

O marinheiro respondeu:

- Nada, não, Senhora. Seu filho só estava tentando fugir de casa.

E estendeu as notas que tinha me tomado.

Eu entrei em casa de cabeça baixa, envergonhado, e fui me esconder no meu quarto. Naquele aniversário, eu não queria mais festa e odiei a minha mãe por convidar os marinheiros a entrar e comer um pedaço de bolo.

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