ESCRAVA
DE JÓ
|
|
Aline
Carvalho
|
|
Tinha lido uma vez, no jornal, o resultado de uma pesquisa feita com donas de casa inglesas. Segundo o estudo, elas sentiam-se extremamente satisfeitas com a realização do serviço doméstico: entravam em uma espécie de estado "alfa" após terminarem as tarefas diárias, felizes com a casa limpa e a obrigação cumprida. Isso causou-lhe enorme indignação. Não se conformava que existissem mulheres, especialmente em países de primeiro mundo, que se satisfizessem com a realização de um trabalho que, para ela, era aviltante, deprimente, inferior. É claro que gostava de casa limpa, roupas cheirosas, comida bem-feita - até aí, tudo normal. Mas fazer isso, com suas próprias e intelectualizadas mãos... bem, aí já era outra história. Até que, por essas reviravoltas que as histórias - especialmente as pessoais - dão, ela passou a fazer tudo em casa. A princípio, bastante incomodada: as mãos intelectualizadas ressecavam, inchavam, enchiam-se de bolhinhas por alergia aos produtos de limpeza. Os cabelos, umedecidos pelo suor, armavam-se em torno do crânio, absurdos e rebeldes. A roupa colava-lhe ao corpo. Cheirava a suor. Mas... uma tarde, bem depois do almoço, louça lavada, pia enxuta, piso brilhando, conseguiu ouvir o sussurro do motor da geladeira. Ela estava ficando louca, ou a geladeira parecia realmente feliz? Uma tranqüilidade pairava sobre os cômodos, limpos, cheirosos, como se todos eles estivessem satisfeitos com o destino que a vida lhes dera. Surpreendeu-se. A sensação era boa. A calma da tarde foi permeando seu corpo cansado - ele também satisfeito com o trabalho caprichado. Lembrou-se das súditas da Rainha Elizabeth e solidarizou-se com elas. Era um sentimento universal. Nada de escrava Isaura. Era uma mulher independente, que não precisava de outra a lhe lavar as roupas íntimas e o próprio banheiro. Não tinha escravos em casa. Os escravos de Jô jogavam caxangá. Ela jogava paciência spider, num oásis de paz. |
|
Protegido
de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto
acima sem a expressa autorização do autor
|