O
RELATÓRIO
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Zeca
São Bernardo
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Planos
mais que feitos, alternativas estudadas metodicamente durante mais de
vinte anos. Salvo uma correção ou outra nos poucos investimentos
que pudera fazer acreditava que de fato passaria o resto da vida sem a
necessidade de empregar-se ou sub empregar-se e assim derrubava o julgo
alheio sobre seu tempo. Agora que próprio, como a casa velha na
periferia que mesmo bem cuidada requeria uma ou duas de mãos de
tinta nova para não minguar o amarelo das manhãs de verão
perdendo-se os raios nas rachaduras teimosas, notava a agenda cada vez
mais vazia. Foram-se os filhos casados e cada qual tinha sua vida, sua
família, e por sua vez seus filhos. Cabia-lhes a vez no jogo da
vida de serem pais, como coube a esposa a vez da procura da felicidade
doze anos atrás e partiu em sua busca de prazer e completitude
em outros braços. Da aventura sobrou-lhe dividas, o processo de
abandono do lar, as perdas inerentes ao exigir na justiça uma pensão.
Pela expressão no rosto do juiz, quando da única audiência
realizada para desenrolar a questão, ficou translúcida a
certeza de que no fundo, no fundo, bem abaixo da beca ou, ainda mais longe,
onde guardava o brilho dos olhos do dia em que colocou no dedo pela primeira
vez o anel de doutor repousava a certeza da resposta idêntica de
todo homem: que vá pedir dinheiro ao amante. Estas
águas, já de muito bem passadas, deixaram o ranço
do afogamento em sua saliva ao ponto de sentir-se entumefado como um afagado
e lívido de esperanças de qualquer tipo de felicidade. Começou
a notar-se velho no espelho, que nunca lhe mentiu sobre nada apenas não
he transmitia suas impressões diárias pela pura e simples
falta de consulta, depois de ler o memorando com data marcada para sua
aposentadoria. Só então o cinza da delegacia foi entrando
em seu corpo e dando mostras de pigmentar-lhe a pele. Primeiro uma manchinha
discreta aqui, outra ali e com o passar apressado dos poucos dias que
faltavam num meio dia de outono pegou-se encostado junto á uma
parede e percebeu que os colegas de trabalho já não o notavam
mais. Perplexo, acreditou-se condensado as grossas e rústicas paredes
e do fundo da alma torceu para que em mais uma rebelião não
derrubassem algum muro que viesse, na atual circunstancia, a rebentar-lhe
o traseiro. Alguns
minutos depois a lógica sempre empregada para resolver tantos e
tantos casos revelhou-lhe a verdade; poderia sair dali a hora que bem
entendesse! Contentando-se, assim, em apenas ser mais uma parte do prédio
que caminhava e não necessariamente outro fantasma cingido na largura
ou no comprimento de sua estrutura. Logo
o cinza tomou-lhe as pontas dos dedos e na véspera do último
dia já não precisava mais consultar o espelho para saber
que pela velocidade em que devorou suas mãos e braços tomara-o
todo. Tomou mais um gole do velho café frio, com gosto de requentado
dos últimos anos, não culpando nem garrafa, nem pó,
nem copeira, nem o paladar já cansado vencido pela expiação
de outros sentidos e, sim, deixou-se dominar pela certeza de que aquele
era o mesmo café do dia em que assumiu o cargo de investigador.
Certamente, era o mesmo café servido nas primeiras horas do primeiro
dia em que a delegacia foi aberta e que teimava em não acabar nunca
para que se pudesse fazer um novo, fresco, apenas prolongando o amargo,
escurecendo mais e mais a cada dia. Finalmente
livrar-se-iam da velha máquina de escrever! Já fora convidado
á leva-la para casa diversas vezes, como não o fez, aguardava
sua vez de ser aposentada em definitivo e amargar sua pena num corredor
qualquer junto com outras tantas quinquilharias em desuso, processos arquivados
e provas fundamentais que poderiam desarquivar os mesmos. Como não
deviam ali estar e sim arquivados, procuravam durante dias onde anexar
os relatórios das provas fundamentais ou complementares em meio
aos arquivos e constatando que lá não estavam mandavam-os
para um canto qualquer. Que calhava ser onde estavam descansado já
há anos seguidos esperando que alguém os arquiva-se. Não
pense você que assim ficavam para sempre!Não, claro que não,
vez ou outro algum prescrevia e este ato realizado mais pela convenção
do que pela prática ou técnica processual em si davam-lhes
uma nova e subjetiva visibilidade. Pareciam despertar algum tipo de luz
ou cantar partes de alguma canção que só os responsáveis
pelo suposto arquivamento conseguiam ver ou ouvir. Recolhiam-os e confirmados
as devidas prescrições, ai sim, eram devidamente sepultados
no arquivo morto com o definitivo carimbo de tinta nova onde se lia: prescrito! A
burocracia já não era problema seu, colocou o papel na velha
máquina, centralizou-o, prendeu-o com aquela haste de metal que
ninguém mais lembra o nome e desenvolveu as palavras no último
relatório que preencheria. Dominado pela arte que iluminava o rosto
e um dia deram o nome de datilografia. Um processo tão complexo
e de tantas exigências que no decorrer de sua carreira levou tanto
tempo para dominá-lo que pela ocasião do convite de um amigo
escreveu um ou dois livros contando suas venturas, desventuras e bem poucas
aventuras de seus primeiros dez anos como investigador na capital. Trabalho
feito, revisado, papel novo e estalando no frescor da manhã em
que tombaram os eucaliptos, encaminhou o primeiro volume para o amigo
editor. Em respostas, meses depois, recebeu uma carta breve onde lhe pedia
que mandasse, também e urgente, a obra em disquete para ser encaminhada
á um número maior de analistas. Era totalmente avesso á
essas novidades...concluiu o segundo volume anos depois e encaminhou os
dois uma segunda vez. Recebeu em resposta a mesma carta, uma repetição
quase gêmea da primeira, solicitando que encaminhasse em anexo aos
tomos devolvidos um Cd com os respectivos arquivos. Não teve pressa,
terminou o terceiro volume encaminhou os três algum tempo depois.
Só para constatar que lhe enviariam mais uma carta idiota solicitando
urgentemente a satisfação de mais alguma exigência
e foi com os olhos cansados desta certeza que abriu o envelope numa tarde
de outono e ficou perguntando-se o que, afinal de contas, era um e-mail
onde deveria anexar um certo formulário eletrônico disponível
em certo site. Destas
e outras coisas só alcançou alguma compreensão nos
últimos anos de serviço quando já não pode
mais fugir da modernidade. Uma vez que informatizaram o departamento de
policia. Acabado
o relatório levou-o pessoalmente a mesa do delegado e pediu-lhe
que o poupasse da despedida do último dia. Os colegas viriam nisso
um certo sentimentalismo, prova que nunca realmente o conheceram. Embaixo
do braço levou junto com o jornal a placa de prata com os mais
sinceros agradecimentos da comunidade, do estado, da nação,
dos colegas de trabalho e das incontáveis famílias das vitimas
cujos processos não morreram em sua lembrança e pode realizar
seu trabalho. Deixou
a mesa nua, recolhera os objetos pessoais um dia antes, na outra mão
a velha máquina de escrever violentada pelos anos de uso contínuo. Passados os primeiros dias o telefone tocou. Não soube como, tão pouco se deu ao trabalho de verificar como ele o encontrou, do outro lado falou-lhe uma voz que não ouvia desde os tempos da faculdade. um velho amigo de infância localizara-o no funcionalismo público e convidava-o para uma pescaria numa cidade próxima do próximo. Nasceu, assim, a pequena agencia detetives particulares para quem presto um serviço ou outro. Preenchendo relatórios, mandando-os aos clientes, escutando histórias e mais histórias do homem que desesperado tenta me ensinara datilografar numa máquina Remingthon. Como quisesse me iniciar numa seita secreta ou algo assim, impressiona-me sua tenacidade apesar da idade e do cansaço visível, dos passos lentos e medidos. Impressiona-me seu conhecimento não das coisas, pálido reflexo do que realmente são, e sim da alma humana que para ele abre-se um breve olhar. Enquanto perscruto o conhecimento num livro. Há alguma coisa que não se possa descobrir? Talvez, contudo, pouco resiste á uma boa sondagem- me diz, enquanto lubrifica a máquina velha e assenta a voz para outra história. |
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