Atualização 186 - Sondagem
BIOGRAFIA
O RELATÓRIO
Zeca São Bernardo

Planos mais que feitos, alternativas estudadas metodicamente durante mais de vinte anos. Salvo uma correção ou outra nos poucos investimentos que pudera fazer acreditava que de fato passaria o resto da vida sem a necessidade de empregar-se ou sub empregar-se e assim derrubava o julgo alheio sobre seu tempo. Agora que próprio, como a casa velha na periferia que mesmo bem cuidada requeria uma ou duas de mãos de tinta nova para não minguar o amarelo das manhãs de verão perdendo-se os raios nas rachaduras teimosas, notava a agenda cada vez mais vazia. Foram-se os filhos casados e cada qual tinha sua vida, sua família, e por sua vez seus filhos. Cabia-lhes a vez no jogo da vida de serem pais, como coube a esposa a vez da procura da felicidade doze anos atrás e partiu em sua busca de prazer e completitude em outros braços. Da aventura sobrou-lhe dividas, o processo de abandono do lar, as perdas inerentes ao exigir na justiça uma pensão. Pela expressão no rosto do juiz, quando da única audiência realizada para desenrolar a questão, ficou translúcida a certeza de que no fundo, no fundo, bem abaixo da beca ou, ainda mais longe, onde guardava o brilho dos olhos do dia em que colocou no dedo pela primeira vez o anel de doutor repousava a certeza da resposta idêntica de todo homem: que vá pedir dinheiro ao amante.

Estas águas, já de muito bem passadas, deixaram o ranço do afogamento em sua saliva ao ponto de sentir-se entumefado como um afagado e lívido de esperanças de qualquer tipo de felicidade.

Começou a notar-se velho no espelho, que nunca lhe mentiu sobre nada apenas não he transmitia suas impressões diárias pela pura e simples falta de consulta, depois de ler o memorando com data marcada para sua aposentadoria. Só então o cinza da delegacia foi entrando em seu corpo e dando mostras de pigmentar-lhe a pele. Primeiro uma manchinha discreta aqui, outra ali e com o passar apressado dos poucos dias que faltavam num meio dia de outono pegou-se encostado junto á uma parede e percebeu que os colegas de trabalho já não o notavam mais. Perplexo, acreditou-se condensado as grossas e rústicas paredes e do fundo da alma torceu para que em mais uma rebelião não derrubassem algum muro que viesse, na atual circunstancia, a rebentar-lhe o traseiro.

Alguns minutos depois a lógica sempre empregada para resolver tantos e tantos casos revelhou-lhe a verdade; poderia sair dali a hora que bem entendesse! Contentando-se, assim, em apenas ser mais uma parte do prédio que caminhava e não necessariamente outro fantasma cingido na largura ou no comprimento de sua estrutura.

Logo o cinza tomou-lhe as pontas dos dedos e na véspera do último dia já não precisava mais consultar o espelho para saber que pela velocidade em que devorou suas mãos e braços tomara-o todo. Tomou mais um gole do velho café frio, com gosto de requentado dos últimos anos, não culpando nem garrafa, nem pó, nem copeira, nem o paladar já cansado vencido pela expiação de outros sentidos e, sim, deixou-se dominar pela certeza de que aquele era o mesmo café do dia em que assumiu o cargo de investigador. Certamente, era o mesmo café servido nas primeiras horas do primeiro dia em que a delegacia foi aberta e que teimava em não acabar nunca para que se pudesse fazer um novo, fresco, apenas prolongando o amargo, escurecendo mais e mais a cada dia.

Finalmente livrar-se-iam da velha máquina de escrever! Já fora convidado á leva-la para casa diversas vezes, como não o fez, aguardava sua vez de ser aposentada em definitivo e amargar sua pena num corredor qualquer junto com outras tantas quinquilharias em desuso, processos arquivados e provas fundamentais que poderiam desarquivar os mesmos. Como não deviam ali estar e sim arquivados, procuravam durante dias onde anexar os relatórios das provas fundamentais ou complementares em meio aos arquivos e constatando que lá não estavam mandavam-os para um canto qualquer. Que calhava ser onde estavam descansado já há anos seguidos esperando que alguém os arquiva-se.

Não pense você que assim ficavam para sempre!Não, claro que não, vez ou outro algum prescrevia e este ato realizado mais pela convenção do que pela prática ou técnica processual em si davam-lhes uma nova e subjetiva visibilidade. Pareciam despertar algum tipo de luz ou cantar partes de alguma canção que só os responsáveis pelo suposto arquivamento conseguiam ver ou ouvir. Recolhiam-os e confirmados as devidas prescrições, ai sim, eram devidamente sepultados no arquivo morto com o definitivo carimbo de tinta nova onde se lia: prescrito!

A burocracia já não era problema seu, colocou o papel na velha máquina, centralizou-o, prendeu-o com aquela haste de metal que ninguém mais lembra o nome e desenvolveu as palavras no último relatório que preencheria. Dominado pela arte que iluminava o rosto e um dia deram o nome de datilografia. Um processo tão complexo e de tantas exigências que no decorrer de sua carreira levou tanto tempo para dominá-lo que pela ocasião do convite de um amigo escreveu um ou dois livros contando suas venturas, desventuras e bem poucas aventuras de seus primeiros dez anos como investigador na capital. Trabalho feito, revisado, papel novo e estalando no frescor da manhã em que tombaram os eucaliptos, encaminhou o primeiro volume para o amigo editor. Em respostas, meses depois, recebeu uma carta breve onde lhe pedia que mandasse, também e urgente, a obra em disquete para ser encaminhada á um número maior de analistas. Era totalmente avesso á essas novidades...concluiu o segundo volume anos depois e encaminhou os dois uma segunda vez. Recebeu em resposta a mesma carta, uma repetição quase gêmea da primeira, solicitando que encaminhasse em anexo aos tomos devolvidos um Cd com os respectivos arquivos. Não teve pressa, terminou o terceiro volume encaminhou os três algum tempo depois. Só para constatar que lhe enviariam mais uma carta idiota solicitando urgentemente a satisfação de mais alguma exigência e foi com os olhos cansados desta certeza que abriu o envelope numa tarde de outono e ficou perguntando-se o que, afinal de contas, era um e-mail onde deveria anexar um certo formulário eletrônico disponível em certo site.

Destas e outras coisas só alcançou alguma compreensão nos últimos anos de serviço quando já não pode mais fugir da modernidade. Uma vez que informatizaram o departamento de policia.

Acabado o relatório levou-o pessoalmente a mesa do delegado e pediu-lhe que o poupasse da despedida do último dia. Os colegas viriam nisso um certo sentimentalismo, prova que nunca realmente o conheceram. Embaixo do braço levou junto com o jornal a placa de prata com os mais sinceros agradecimentos da comunidade, do estado, da nação, dos colegas de trabalho e das incontáveis famílias das vitimas cujos processos não morreram em sua lembrança e pode realizar seu trabalho.

Deixou a mesa nua, recolhera os objetos pessoais um dia antes, na outra mão a velha máquina de escrever violentada pelos anos de uso contínuo.

Passados os primeiros dias o telefone tocou. Não soube como, tão pouco se deu ao trabalho de verificar como ele o encontrou, do outro lado falou-lhe uma voz que não ouvia desde os tempos da faculdade. um velho amigo de infância localizara-o no funcionalismo público e convidava-o para uma pescaria numa cidade próxima do próximo. Nasceu, assim, a pequena agencia detetives particulares para quem presto um serviço ou outro. Preenchendo relatórios, mandando-os aos clientes, escutando histórias e mais histórias do homem que desesperado tenta me ensinara datilografar numa máquina Remingthon. Como quisesse me iniciar numa seita secreta ou algo assim, impressiona-me sua tenacidade apesar da idade e do cansaço visível, dos passos lentos e medidos. Impressiona-me seu conhecimento não das coisas, pálido reflexo do que realmente são, e sim da alma humana que para ele abre-se um breve olhar. Enquanto perscruto o conhecimento num livro. Há alguma coisa que não se possa descobrir? Talvez, contudo, pouco resiste á uma boa sondagem- me diz, enquanto lubrifica a máquina velha e assenta a voz para outra história.

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