O
INSTANTE
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Keila
Abreu
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Quando
Ella chegou, atravessou o quarto devagar, olhando com cuidado todos os
detalhes. Maria Clara dormia e Ella parou diante do leito. Ficou olhando
a expressão de dor estampada naquele rosto jovem. Deteve-se nas
marcas arroxeadas na pela, resultado das agulhas, remédios e soro.
Maria Clara não percebeu sua presença. Ainda não
era hora. Com
o mesmo passo lento, chegou à janela e ficou ali, observando o
dia. Uma garoa fina molhava o vidro e, lá embaixo, as pessoas andavam
apressadas, cada qual com seus problemas, cada uma com suas próprias
aflições. Angústias grandes, problemas ainda maiores.
Podia ver o peso arqueando os ombros daquelas pessoas que seguiam como
formigas, perdidas no descompasso entre a pressa e a vida. Soltou
um suspiro profundo. Havia terminado seu trabalho mais cedo e foi logo
estar com Maria Clara. Gostava de sondar como estava o ambiente antes
de realizar suas missões. Costumava achar mais fácil trabalhar
em hospitais, pois geralmente as pessoas sofriam naquele lugar e não
opunham resistência. Se Maria Clara estava sozinha no quarto, o trabalho seria ainda mais fácil. Contente com a idéia da facilidade no desempenho da última tarefa do dia, pôs-se a observar as coisas no quarto a fim de distrair-se. Gérberas num jarrinho de vidro e um cartão ao pé do buquê com um bilhetinho apaixonado. Sorriu com ternura. Um livro de Kundera sobre a mesinha e algumas revistas sobre frivolidades. Uma boneca de pano. Deteve-se naquele mimo. Maria Clara era quase adulta. Dezesseis
ou dezessete. Sorrisos na fotografia com a turma da escola. Um rosto muito
corado e dentes brancos, emoldurados por cabelos escuros e brilhantes.
Muito brilho nos olhos. Em nada lembravam aquela pessoa inerte sobre o
leito, com a pele de parafina e uma expressão angustiante, apesar
do sono profundo. A
enfermeira entrou e não deu pela presença de Ella. Verificou
o soro e os aparelhos. Certificou-se de que a janela estava fechada e
saiu sem cerimônia. Ella continuou sua inspeção. A
camisola era cor-de-rosa com pequeninas flores bordadas. Ao lado da menina
um urso de pelúcia muito antigo, com cheiro de infância.
Aquilo fez com que ela sorrisse comovida. Ficou
olhando o rosto de Maria Clara e fez uma expressão intrigada. Havia
muito tempo que cumpria sua missão dolorosa. Em muitas ocasiões
tinha que trabalhar com crianças. E não conseguia conceber
o motivo desse sortilégio. Tantas pessoas muito mais velhas, ali
mesmo naquele corredor, repletas de dores e rancores, imploravam sua presença,
e naquela noite estava ali só por Maria Clara. Olhou novamente
as flores, os recados dos amigos, as fotografias, os sorrisos. Se fosse
de outro modo, se ela não estivesse ali, sobre aquele leito de
hospital, seria doloroso até mesmo para si, acostumada a esse fato,
arrancar Maria Clara daquele lugar. Mas
olhava para ela e sabia da dor que estava sentindo. Não via, porém
sabia, pela experiência que tinha, as escaras em suas costas, as
dores que a doença lhe trouxe e que aumentavam a cada dia, a fraqueza,
a dor de ir perdendo, àquela altura da vida, todos os símbolos
de sua juventude, sua beleza, o brilho dos olhos. Sabia, porque era de
saber, que Maria Clara, no dia anterior, tinha saído de sua quinta
cirurgia. E
a hora ia passando. Ella ficou junto ao sofá, observando sons imperceptíveis.
Ouviu os passos rápidos se aproximando. Um casal de meia-idade
entrou com algum alvoroço. A mulher postou-se ao lado da menina
e chorou com muito sentimento. Chamava-a de filha e apertava a mão
pálida contra o peito, beijando-a com sofreguidão. O homem
tocou os cabelos da mulher com alguma compaixão. E Maria Clara
permanecia inerte. Não tinha dúvida, diante daquele quadro,
que seria melhor para Maria Clara. Mas desespero de mãe era algo
que sempre detinha suas forças. Não conseguia cumprir sua
missão com desenvoltura. A mãe parecia pressentir sua presença
e chorava com mais angústia. A
mulher sorriu. Os médicos haviam dito tantas coisas ruins e agora
Maria Clara estava diante de si sorrindo e fazendo planos. Fez menção
de ir chamar os médicos, porém a filha pediu que ficasse.
Então foi o pai quem correu a chamar os dois homens que entraram
no quarto sem acreditar no que viam. Então todos ficaram muito
satisfeitos com aquilo que parecia ser um milagre. Parecia estar certo
de que Maria Clara iria recuperar-se logo. Seu rosto estava levemente
corado. As pessoas ali se puseram a conversar e seus corações
estavam tranqüilos. Mas era chegada a hora. Maria Clara olhou para a janela. Ella estava de pé e sua imagem pareceu uma figura celestial aos olhos da menina. Ella estendeu-lhe a mão com um sorriso muito sereno. Os que estavam no quarto viram apenas Maria Clara estender a mão na mesma direção da janela e, de pronto, perder as forças e fechar os olhos. |
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