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BIOGRAFIA
PASSAPORTE FALSO
Doca Ramos Mello

Essa história estranha da brasileira que se disse atacada por neonazistas na Suíça me rendeu uma inimizade brava, de bobeira. Assim que saiu a reportagem, fiquei escandalizada com o ataque que a moça dizia ter sofrido e, preocupada, enviei e-mail para uma conhecida que mora em Zurique há algumas dezenas de anos, recomendando-lhe cuidado por lá, apesar de essa conhecida se considerar suíça de berço, mesmo com aquela corzinha parda que caracteriza maravilhosamente a quase todos nós brasileiros e dá indícios, a qualquer europeu, de que debaixo dessa cor tem um estrangeiro, sabe como é, eles lá farejam essas coisas...

Era para ser apenas um alerta, mas a troca de e-mails entre nós desandou numa encrenca ferrada, quando eu percebi que minha conhecida estava quase totalmente a favor da polícia suíça e desconfiada da palavra da brasileira. Se bem que, por aqui também, o noticiário foi mudando para indicar que esperava uma definição das investigações, no sentido de dar respostas coerentes aos seguintes itens: 1. teria a moça sido agredida realmente?; 2. seriam neonazistas a tê-la agredido?; 3. a advogada brasileira estaria realmente grávida de gêmeas que afirmava ter abortado por conta do ataque?

A essas questões básicas, ainda acrescentei: 1. que teria o noivo suíço a declarar, por que ele não aparece?; 2. sendo a brasileira moça com bom emprego na Suíça, portanto legal no país, a troco de que faria uma "encenação" dessas, pondo em risco sua vida lá?; 3. teria ela problemas comportamentais/mentais - porque ou é louca ou é trapaceira - não detectados até o momento desse fato, uma vez que no dizer de seu pai sempre foi equilibrada, estudiosa e tranqüila?

Os dias foram se passando e eis que, de acordo com a polícia de Zurique, a moça confessou que tudo não passou de uma farsa, apesar de não ter ainda declarado as razões pelas quais teria cometido tamanha falta de responsabilidade e respeito. (E eu posso imaginar a cara da suíça fake, babando de alegria, afinal estava com a razão, a brasileira é canalha, louca, ordinária, etc...).

Muito bem.

Enquanto ainda não havia tal confissão, me bati pela conterrânea e debati o tema com a conhecida, até que a coisa desandou num ataque imbecil de ambos os lados, ainda que eu reconheça ter começado a celeuma, mas fiquei inconformada com os argumentos usados pela conhecida. Segundo esta, "os brasileiros ["eles", os brasileiros] queimam a cara na Suíça" - queimam a cara dela, por suposto, já que de sua parte se considera suíça e, portanto, acima dessas considerações. De fato, até onde sei, é uma cidadã decente, mulher casada, com dois filhos de marido suíço, a vida sadia e honesta, gente boa, apesar do natural pedantismo que muitas vezes dá verniz ao brasileiro que vive fora e quer passar uma borracha na vida pregressa. Porém, me irritou sobremaneira o modo de ela se demonstrar mais afeita ao povo de lá que a seu povo brasileiro, ainda que compreenda que isso é mais ou menos normal, afinal o Brasil é uma gente pobre, terceiro mundo, e quanto mais pobre pessoalmente se seja, nos mais diversos sentidos, mais se se apressa a renegar as tupiniquins origens...

Entretanto, a conhecida levou a questão para outro lado e descobrir que ela alimentasse conceitos tão retrógados mesmo depois de tantos anos de vivência na civilizada Europa, me deixou acabrunhada, muito mais com essa descoberta que com o desenrolar do rolo...

...Porque a neosuíça de araque afirmou lamentar a minha "falta de oportunidade" de me casar com um suíço e morar na Suíça, atribuindo a esse evento tudo de bom que supostamente possa ter alcançado na vida, como se somente (única e exclusivamente) esse tipo de evento fosse capaz de me dar alguma coisa que eu não tivesse chance de conseguir por méritos próprios e em meu país mesmo! E ainda desfilou um monte de bobagens que nada acrescentavam ao tema, dizendo que os filhos dela falavam diversas línguas, o marido era maravilhoso, blá, blá, blá, condicionando tais benesses ao casamento com estrangeiro, Jesus! Pobrezinha, pensei comigo, o casamento como tábua de salvação, como única passagem para um lustro do qual alguém possa se ressentir muito é uma atitude medieval totalmente démodé. Na Idade Média, moças pobres ascendiam a classes sociais superiores casando-se com nobres, como ainda fazem, desgraçadamente hoje, jovens mulheres que se unem a velhos ricos.

Fechando o pacote, a orgulhosa autodeclarada suíça colocou meu endereço no lixo eletrônico, talvez por não suportar o debate ou quem sabe também o assédio à sua mente e ao seu coração, de antigas histórias que devem estar grudadas em sua alma como um visgo maldito e das quais tanto deseja se livrar, a ponto de acreditar no casamento com um suíço como passaporte definitivo para apagar o que lhe corre nas veias atracado ao DNA e com poder de assombrá-la na intimidade de suas memórias. Do meu lado, eu me senti uma completa idiota, afinal, de que me serviu ficar sondando certas opiniões a respeito de um assunto cujo final não estava definido e que ainda serviu para me lembrar, por vários prismas deprimentes, quão melancólica pode ser ainda a situação da mulher mesmo no mundo dito moderno, oh, céus?!

Outro detalhe: por que tive um chilique do tipo nacionalista e saí atirando só pelo fato de a conhecida demonstrar mais apreço e confiança no povo de lá? É um direito dela, oras.

Não obstante, fiquei pensando no convite que fiz a ela para que viesse me visitar quando de sua viagem a esta terra chinfrim, por ocasião de suas férias em Santa Catarina - a Suíça é tudo, mas férias de verdade só mesmo sob os sóis do Brasil -, para apreciar goiabas, jabuticabas, cocos, bananas, acerolas, pitangas, cajus, pitangas e laranjas do meu quintal. E ainda havia prometido um show de céu estrelado, lua sobre o mar e apresentação de vaga-lumes à noite. Despautério à parte, disse ela que contava poder exibir, durante o dia, o coral alucinado das cigarras, o vôo de borboletas azuis, beija-flores, bicos-de-lacre, noivinhas, sabiás, bem-te-vis, sanhaços, tiês...

No frigir dos ovos, imagino que esse convite também deve ter acirrado os ânimos da conhecida, afinal onde já se viu uma oferta caipira e mequetrefe como essa dirigida a uma cidadã suíçíssima da silva? Que desplante! Faltou pouco para eu acenar com um bolo de fubá de buraco no meio e café quentinho feito na hora, que jeca! Ou seja: a lesa aqui não se contenta em perder "oportunidades" na vida e ainda faz oferecimentos imbecis, assim não dá...

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