O
ACERTO
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André
Calazans
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O homem coloca a mão no fone e fala baixo para o que vem entrando, a fim de que seu interlocutor no outro lado da linha nada escutasse: - Entra aí, Jorge. Senta que eu já falo contigo, deixa só eu terminar a ligação. Faz um favor pra mim: fecha a porta com a chave. O escritório do patrão não era muito melhor que o resto da gráfica. Feito de forma improvisada, de madeira, tinha um monte de material impresso, catálogos e fotolitos espalhados. Se você andasse pisando com força, o chão tremia. - Então tá, Antunes. Fica combinado assim. Pode ficar tranquilo que assim que eu receber aquelas duplicatas eu começo a acertar contigo. Pode deixar, a gente se fala antes disso. Um abraço. O dono do pequeno negócio desliga o telefone e encara o funcionário por um instante, como se refletisse sobre a melhor maneira de iniciar o diálogo. -
Tudo bem, Jorge ? Como você tem passado ? -
Tudo certinho, seu Almeida. - Você sabe por que eu te chamei aqui, não sabe ? O homem pensa por alguns segundos antes de responder, mas ainda assim se atrapalha. -
Sei não... quer dizer, sei mais ou menos. Deve ser por causa daquilo
que o senhor falou outro dia. -
Isso mesmo, o nosso acerto. E aí ? Você pensou direitinho
? -
Doutor, eu não vou querer contrariar o senhor, que sempre me tratou
muito bem. Mas o senhor falando toda vez em acerto ... a gente não
chegou a acertar nada. Eu fiquei de pensar, o senhor tá lembrado
? -
Claro, claro, não quis te apressar. Mas e aí, você
chegou a pensar ? A gente pode continuar aquele assunto ? -
Doutor, eu vou ser sincero. Tudo bem que o senhor é muito bom pra
mim, mesmo. Isso eu não vou esquecer é nunca. Quando saí
da cadeia, se não fosse pelo senhor eu tava batendo cabeça
por aí até hoje, sem trabalho ... Mesmo sabendo que eu já
tinha tirado a vida de um homem, o senhor me deu um voto de confiança. -
Eu acreditei em você, Jorge. No seu trabalho, na sua capacidade.
Na sua honra. -
E eu até prometi, jurei por todos os santos e até pela minha
filhinha que eu nem sei mais donde que tá, que o senhor não
ia se arrepender, não é mesmo ? -
Isso mesmo, Jorge. Não posso reclamar do seu serviço. -
E eu também sei que aquele seu sócio, o seu Antunes, não
é flor-que-se-cheire. Nunca tá aqui trabalhando, e quando
aparece é só pra reclamar, encher a paciência de todo
mundo. O senhor toca isso aqui sozinho, eu sei. E o sujeito devia é
ficar agradecido, mas nem o senhor ele respeita. -
Pois é, Jorge, pra você ver o que eu aguento. E como eu te
disse, ele quer até fechar o negócio, mandar todo mundo
embora. Só quer tirar dinheiro daqui, ficar na moleza. Não
sei até quando vamos poder suportar essa situação
... -
Eu sei, doutor, eu sei. Eu também não gosto nem um pouco
dele, o senhor sabe que ele me trata muito mal, e não foi nem uma
nem duas vezes, não. E o pior que é sempre na frente de
todo mundo, parece que quer espezinhar mesmo, não é isso
? E olha que eu nunca respondi. -
Então, Jorge, você não acha que a gente tem motivo
de sobra ? Pensa no seu emprego, a tranquilidade que vai ficar. E o dinheirinho
extra, hein ? -
Mas doutor, eu concordo com tudo que o senhor falou dele. Não vale
é nada o miserável. Se tivesse bem longe, ia ser melhor,
eu sei. Mas eu jurei de pé junto que por nada dessa vida que eu
matava alguém de novo, o senhor sabe ? Nem por mulher nenhuma que
elas não merece. Se aquele acontecido que me desgraçou fosse
hoje, podia até estrupar ela na minha frente, que eu nem ligava. - Ninguém tá falando em se sujar pelos outros, Jorge. Não é como da outra vez, agora é por você. O seu trabalho, a sua tranquilidade, a sua vida. E o dinheiro - merecido - que você vai conseguir com isto, é claro. A conversa fica inconclusa, com os dois combinando de continuá-la mais tarde. O empregado envereda por outros assuntos e pede licença pouco depois, para dar entrada em um trabalho juntamente com outro colega. Ele desce para a produção e coloca as chapas na máquina bicolor, preparando-a para a impressão. Pouco a pouco, os desenhos vão ganhando nitidez no papel. De repente, o homem fica distante e parece esquecer o serviço, nem notando a aproximação do companheiro. - E aí, Jorge, já terminou o acerto ? Ele não responde. Estava absorto, melancólico, encarando as falanges que lhe faltavam em dois dedos. Fora vitimado quando jovem, pouco mais que um menino, ao operar uma guilhotina no acabamento de um material. Naquela época, os equipamentos não tinham segurança alguma. Não eram como os modernos, que exigem o aperto simultâneo de dois botões, distantes um do outro, para fazer a lâmina descer. - E aí, Jorge, e o acerto ? - repete o homem, desta vez em tom bem mais alto. O homem é pego de surpresa. Não sabendo o que responder, ele balbucia, inseguro e assustado: -
Que ... que acerto ?!? - Porra, mermão, o acerto da máquina, tá maluco ? Não tá vendo que ainda tá meio fora de registro ? - fala com rispidez o homem, pegando uma das folhas de papel que a impressora cuspia velozmente. Carrega um pouco mais no magenta ! Ele se desculpa com o colega e volta a se concentrar na tarefa. Em poucos minutos, mostra uma nova leva de folhetos, já na tonalidade desejada. Missão cumprida, o acerto fora feito. Pelo menos aquele. Quanto ao do patrão, tinha que pensar mais um pouco. Pensar em como dizer não sem ofender o homem que lhe dera uma nova chance. E não desperdiçá-la, ainda que precisasse, paradoxalmente, sacrificar seu emprego por isto. Afinal de contas, precisava acertar sua vida de vez. |
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