FERNANDO,
ME PERDOA
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Ricardo
Lahud
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Uma barata-noiva
sem asas. Assim me sinto no úmido cubo onde minha cama repousa.
Ao olhar pela janela, uma meia janela, vejo e reconheço os transeuntes
pelos sapatos, pelos vincos das calças, pelas depilações
das canelas. Uma barata descascada pretendendo ser larva de dragão,
morando não num subsolo mofado, mas num ninho ancestral. Mesmo
sabendo que sou não-dragão. Não sou nada. Não
posso ser nada, a não ser tudo o que sonhe em ser. Os homens
escondiam os cabelos brancos nos chapéus, não mais. Carroças
e merda de cavalos infestavam a rua na frente da minha janela. Não
mais. O progresso chegou e trocou as bestas pelos motores e os chapéus
por obscenidades escondidas nas cabeças dos velhos. E conheço
cada uma das verdades de cada uma das pessoas, mas nunca sei qual verdade
pertence a quem, na minha cabeça todas se misturam por absoluta
falta de gavetas. Saí
hoje de casa como um rei, um pequeno deus ou pelo menos um anjo poderoso.
Alegria de dois cálices de um Porto presenteado e uma fome que
podia ser enfrentada a qualquer tempo com os muitos tostões da
algibeira. Ouro indigno, pois fruto de poemas vendidos. Não sabem
eles que os poemas pertencem a quem deles necessitam. Em frente
à porta da casa de onde alugo o porão que chamamos (eu e
o senhorio) de meu quarto se ergue a Tabacaria. Basta atravessar a rua
sem ser atropelado para se dividir entre a sensação real
da maciça porta de altura exagerada e a sensação
onírica da visão de dentro do salão através
dos vidros opacos em forma de colméia que impedem que a realidade
saia e ativam a imaginação dos passantes. Falho
ao entrar, talvez tenha visto São Jorge caçador de dragões
tomando um conhaque na mesa do fundo. Resisto à tentação
de me sentar junto à sarjeta, local favorito das golfadas de vômito
de tantos homens de bem que maltratam os fígados. Todos eles me
dizem que sou o maior poeta em língua portuguesa de todos os tempos
mesmo que nenhum tenha lido uma única linha. Chamam-me Gênio.
O Portuga, dono do bar que recebeu alguns livros como paga, foi quem começou
com essa história com fins puramente comerciais. Eu sei o que não
sou e sei também que há cem mil gênios virando as
cabeças ao chamado. E tantos Napoleões a lhes fazer companhia
nos manicômios. Meus versos ainda são estrume, talvez dêem
bom adubo, talvez sejam pura merda. Olho
para o cimo tentando reconhecer estrelas, constelações,
galáxias quando uma menina descalça e bela em sua luta desarmada
contra a frialdade vem me pedir esmola. Creio em Cristo, mas não
em seus ensinamentos, Kant é um aprendiz diante das filosofias
que sonho todos os dias, mas o olhar da criança exigia um diálogo
com Demócrito. Como ele não estava disponível arrisquei-me
tabacaria adentro e comprei-lhe chocolates a mancheias. O olhar de malícia
do balconista quase me ofendeu, mas enquanto a meninota devorava os doces,
sujando com a iguaria pastosa a boca, o colo, as coxas, apostei que o
mundo seria perfeito se todos tivessem sua parte de guloseimas e de meninas
sujas. Levei a pequena para discutir aufklärung no ninho do dragão. Revelou-se
uma deusa grega concebida como estátua pela formosura, tornou-se
uma patrícia romana deleitada pelo vinho, uma princesa cheia de
exigências e demandas, uma marquesa do século dezoito instigando
com a pele e ameaçando com venenos. Encerrou a estada durante meu
breve sono como uma cocote moderna levando todas as minhas pratas. Mas
deixou chocolate para a fome da barriga e inspiração para
tantos versos que não haveria espaço no meu quarto para
tantas moedas se eu lhe pagasse de forma justa. Chego
à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Toda a bosta deixada
pelo progresso foi lavada por uma chuva repentina produzida por máquina.
Passam homens em ternos e mulheres em vestidos e meias de nylon, passam
carros, cachorros e policiais bastante armados. Vejo o mundo da minha
rua e me sinto estrangeiro. A porta da tabacaria é minha única
família. Invejo os estrangeiros por não o serem nesses passos
que dão à frente da minha janela, invejo os cães
por cagarem onde melhor lhes aprouver, invejo os mendigos por apenas serem
sem perguntas metafísicas, invejo os agentes da polícia
porque sabem quem são. Invejo as lagartixas por deixarem seus rabos
e continuarem lagartixas. Eu sou o que nunca fui e até o que era
para ser, invejo. Se desmentisse o que me fizeram, talvez pudesse me recuperar.
Mas me perdi. Fiz de mim o que não soube e o que podia fazer de
mim, não fiz. A máscara que me colocaram, prendi-a sobre
minha face e uso fantasias como se fossem fatos comuns. Carrego-me
de alguns livros e planejo novo ataque à tabacaria. Como sou Gênio,
não pode o dono me recusar trocar versos por presunto, vinho, figos
e charutos. Como que pressentindo minha carga, o dono da tabacaria chegou
à porta e ficou à porta. Os olhares se encontram em desconforto,
eu deste lado da rua com o temor do atropelo, ele à porta da tabacaria
com medo da morte. Que tolo, pois é certo que morrerá ele
e morrerei eu, um a deixar a tabuleta sobre a porta, outro a largar os
versos no mundo. No depois, a tabuleta apodrecerá e será
trocada e os versos serão alimento de vermes, insubstituíveis. Um homem entra na tabacaria e leva o dono de arrasto, aproveito a brecha e escapo do desafio da porta para a realidade do interior. Acendo o charuto que ganhei junto com o Porto. A fumaça tem vontade própria e descreve no ar palavras que meu pensamento não reconhece. Sou feliz por fumar apenas, ato essencial. Felicidade é um círculo em brasa e do outro lado do havana uma pessoa que não precisa saber quem é. Ao sair o homem que entrou me reconhece e me saúda com um misto de aceno e continência. Adeus ó Esteves!, respondo satisfeito até reconhecer no inviso sorriso do portuga o tom de quem silencia mas reconhece a gafe: aquele não é o Esteves. Tropico até a saída ainda a tempo de gritar para todos os ouvintes: Fernando, me perdoa. |
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