Atualização 185 - Tema Livre
BIOGRAFIA
FERNANDO, ME PERDOA
Ricardo Lahud

Uma barata-noiva sem asas. Assim me sinto no úmido cubo onde minha cama repousa. Ao olhar pela janela, uma meia janela, vejo e reconheço os transeuntes pelos sapatos, pelos vincos das calças, pelas depilações das canelas. Uma barata descascada pretendendo ser larva de dragão, morando não num subsolo mofado, mas num ninho ancestral. Mesmo sabendo que sou não-dragão. Não sou nada. Não posso ser nada, a não ser tudo o que sonhe em ser.

Os homens escondiam os cabelos brancos nos chapéus, não mais. Carroças e merda de cavalos infestavam a rua na frente da minha janela. Não mais. O progresso chegou e trocou as bestas pelos motores e os chapéus por obscenidades escondidas nas cabeças dos velhos. E conheço cada uma das verdades de cada uma das pessoas, mas nunca sei qual verdade pertence a quem, na minha cabeça todas se misturam por absoluta falta de gavetas.

Saí hoje de casa como um rei, um pequeno deus ou pelo menos um anjo poderoso. Alegria de dois cálices de um Porto presenteado e uma fome que podia ser enfrentada a qualquer tempo com os muitos tostões da algibeira. Ouro indigno, pois fruto de poemas vendidos. Não sabem eles que os poemas pertencem a quem deles necessitam.

Em frente à porta da casa de onde alugo o porão que chamamos (eu e o senhorio) de meu quarto se ergue a Tabacaria. Basta atravessar a rua sem ser atropelado para se dividir entre a sensação real da maciça porta de altura exagerada e a sensação onírica da visão de dentro do salão através dos vidros opacos em forma de colméia que impedem que a realidade saia e ativam a imaginação dos passantes.

Falho ao entrar, talvez tenha visto São Jorge caçador de dragões tomando um conhaque na mesa do fundo. Resisto à tentação de me sentar junto à sarjeta, local favorito das golfadas de vômito de tantos homens de bem que maltratam os fígados. Todos eles me dizem que sou o maior poeta em língua portuguesa de todos os tempos mesmo que nenhum tenha lido uma única linha. Chamam-me Gênio. O Portuga, dono do bar que recebeu alguns livros como paga, foi quem começou com essa história com fins puramente comerciais. Eu sei o que não sou e sei também que há cem mil gênios virando as cabeças ao chamado. E tantos Napoleões a lhes fazer companhia nos manicômios. Meus versos ainda são estrume, talvez dêem bom adubo, talvez sejam pura merda.

Olho para o cimo tentando reconhecer estrelas, constelações, galáxias quando uma menina descalça e bela em sua luta desarmada contra a frialdade vem me pedir esmola. Creio em Cristo, mas não em seus ensinamentos, Kant é um aprendiz diante das filosofias que sonho todos os dias, mas o olhar da criança exigia um diálogo com Demócrito. Como ele não estava disponível arrisquei-me tabacaria adentro e comprei-lhe chocolates a mancheias. O olhar de malícia do balconista quase me ofendeu, mas enquanto a meninota devorava os doces, sujando com a iguaria pastosa a boca, o colo, as coxas, apostei que o mundo seria perfeito se todos tivessem sua parte de guloseimas e de meninas sujas. Levei a pequena para discutir aufklärung no ninho do dragão.

Revelou-se uma deusa grega concebida como estátua pela formosura, tornou-se uma patrícia romana deleitada pelo vinho, uma princesa cheia de exigências e demandas, uma marquesa do século dezoito instigando com a pele e ameaçando com venenos. Encerrou a estada durante meu breve sono como uma cocote moderna levando todas as minhas pratas. Mas deixou chocolate para a fome da barriga e inspiração para tantos versos que não haveria espaço no meu quarto para tantas moedas se eu lhe pagasse de forma justa.

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Toda a bosta deixada pelo progresso foi lavada por uma chuva repentina produzida por máquina. Passam homens em ternos e mulheres em vestidos e meias de nylon, passam carros, cachorros e policiais bastante armados. Vejo o mundo da minha rua e me sinto estrangeiro. A porta da tabacaria é minha única família. Invejo os estrangeiros por não o serem nesses passos que dão à frente da minha janela, invejo os cães por cagarem onde melhor lhes aprouver, invejo os mendigos por apenas serem sem perguntas metafísicas, invejo os agentes da polícia porque sabem quem são. Invejo as lagartixas por deixarem seus rabos e continuarem lagartixas. Eu sou o que nunca fui e até o que era para ser, invejo. Se desmentisse o que me fizeram, talvez pudesse me recuperar. Mas me perdi. Fiz de mim o que não soube e o que podia fazer de mim, não fiz. A máscara que me colocaram, prendi-a sobre minha face e uso fantasias como se fossem fatos comuns.

Carrego-me de alguns livros e planejo novo ataque à tabacaria. Como sou Gênio, não pode o dono me recusar trocar versos por presunto, vinho, figos e charutos. Como que pressentindo minha carga, o dono da tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Os olhares se encontram em desconforto, eu deste lado da rua com o temor do atropelo, ele à porta da tabacaria com medo da morte. Que tolo, pois é certo que morrerá ele e morrerei eu, um a deixar a tabuleta sobre a porta, outro a largar os versos no mundo. No depois, a tabuleta apodrecerá e será trocada e os versos serão alimento de vermes, insubstituíveis.

Um homem entra na tabacaria e leva o dono de arrasto, aproveito a brecha e escapo do desafio da porta para a realidade do interior. Acendo o charuto que ganhei junto com o Porto. A fumaça tem vontade própria e descreve no ar palavras que meu pensamento não reconhece. Sou feliz por fumar apenas, ato essencial. Felicidade é um círculo em brasa e do outro lado do havana uma pessoa que não precisa saber quem é. Ao sair o homem que entrou me reconhece e me saúda com um misto de aceno e continência. Adeus ó Esteves!, respondo satisfeito até reconhecer no inviso sorriso do portuga o tom de quem silencia mas reconhece a gafe: aquele não é o Esteves. Tropico até a saída ainda a tempo de gritar para todos os ouvintes: Fernando, me perdoa.

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