Atualização 185 - Tema Livre
BIOGRAFIA
ADORO CORAÇÕES FEMININOS
Raymundo Silveira

Detesto machos. Só mulheres deveriam existir. Adoro corações femininos. Caminho na noite. Ruas desertas. Sinto o hálito fedido de bandidos. Entro na Livraria Cultura e finjo folhear um livro. Ela caminha rápido, sem se voltar, mas não ignora que é seguida. Pressinto o seu pavor. Dois urubus prestes a atacar a apetitosa carnagem. Apressa o passo; eles também. Conheço as peças. Já os vi no Paulo Sarasate. Ambos estupradores contumazes. Cuidam que estão sozinhos: eles e a presa. Volto atrás sobre homens e mulheres. Eles devem viver, sim, mas só para servi-las. Sem nenhum desejo libidinoso. Sonho. Castração compulsória e universal de todo menino recém-nascido. Que reprodução, que nada! Não sou leigo. Leio e estudo. Há muito tempo, fêmeas prescindem de machos para engravidar. E, as humanas, precisam de um homem para ter prazer tanto quanto para pentear os cabelos. Escuto vozes. Para o Inferno! Para o Inferno! Enxergo vultos. Reflexos do passado. O despontar da puberdade. Ameaças prévias... Tangíveis os horrores proclamados. A ameaça não era fazer sexo, mas pensar em sexo. Terror, desassossego. Pavor de perder dignidade identidade gênero. Infundiram-me nas veias litros de remorsos. Eterno complexo de culpa. Desejei a minha própria castração; até mesmo a do pensamento. O inferno, prometido para depois da morte, era presente. Agora sinto muita fome. E não somente de justiça. A mulher virou à direita. Eles também. Sigo-os. Ela diminui a marcha. Posso avaliar o peso das suas pernas. Os urubus não se alteram: aproximam-se aos poucos. Prelibam. A distância se encurta. Olharam para trás, me viram e me reconheceram, os miseráveis. Sabem quem eu sou. Estão, agora, assustados tanto quanto a mulher. Não ignoram que os odeio. Correram, os covardes. Não uso arma de fogo. Nunca usei. Basta-me este cutelo - afiadíssimo. Corro ao encontro da coitada que, chorando, me abraça. Salivando demais, saco o meu cutelo. Ela ainda não sabe que eu adoro corações femininos...

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