SANTINHA
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Maria
Luísa Rocha
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Pedro decidiu se casar aos vinte e nove anos. Juliana, sua noiva, era muito bonita, educada e sincera. Os noivos subiram ao altar no mês de maio, como manda o figurino, com direito a uma copiosa chuva de arroz na saída da igreja. O bufê foi escasso, mas requintado. Os convidados se acotovelaram para disputar os copos de cerveja e os salgadinhos insossos, com gosto de farinha, apesar da sofisticada apresentação. Viajaram para a praia em lua de mel, presente do padrinho João, tio do noivo, diretor de uma empresa de seguros. Voltaram três dias depois e a rotina começou. Trabalho, casa, compras, finais de semana na casa das famílias, ora em uma, ora em outra, para prevenir ciúmes. Rapidamente comemoraram um ano de casados. Tudo estava correndo às mil e uma maravilhas quando, em uma noite gelada de julho, Pedro teve um sonho revelador: não queria absolutamente saber de filhos. Neste sonho, visitou Santinha, uma égua que sua mãe salvara da morte há muitos anos atrás ao comprá-la de um carroceiro malvado que a maltratava, explorando-a de sol a sol. O animal passou a morar no sítio de sua tia Lu, onde logo se restabeleceu com bom tratamento e farta alimentação. Descobriram que ela estava prenhe; parece que era a terceira vez. Como sempre perdia os cavalinhos na hora do parto, devido à fraqueza e aos constantes maus tratos, a chance de nascer um cavalinho era bem remota. Meses depois, o desfecho previsto. Nesta ocasião, o que muito impressionou Pedro foi a indisfarçável alegria de sua mãe ao saber que o filhote não havia sobrevivido. Como sua mãe podia ficar feliz com isto? Pedro angustiou-se por muito tempo até que, finalmente, tomou coragem e perguntou-lhe porque reagira daquela maneira. Ela explicou que o motivo de tanta felicidade era o alívio por saber que haveria um ser indefeso a menos sofrendo neste mundo cruel. Assim, ao invés de cuidar do filhote, ela poderia salvar mais outro animal da violência ou da morte. Na sua infantilidade, Pedro não entendia a lógica materna, mas calava-se mergulhado em decepção. Às vezes olhava a mãe com receio, como se estivesse diante de uma perigosa assassina. O tempo passou, Pedro cresceu, amadureceu e se acostumou com as extravagâncias maternas. Observando as pequenas maldades humanas, o desprezo pelos indefesos, chegou a lhe dar um pouco de razão. E foi assim que, em pleno sonho, Pedro tomou a decisão que iria modificar sua vida. A tranquilidade de Santinha, sem preocupações com crias, a leveza de sua mãe, tudo isto, finalmente, inspirou e determinou sua escolha em não procriar. Comunicou-a à esposa que, imediatamente, começou a chorar. Não era possível! Queria tanto um bebê... preparar o quarto, pintar as paredes de azul (primeiro teria que vir um menininho, o Juninho, embora já estivesse com alguns nomes da moda na mente)... Já se imaginava desfilando com a barriguinha diante dos olhares invejosos de algumas amigas, tendo vários desejos inoportunos, como vontade de comer filtro ou sopa de rã durante a madrugada, como já vira em filmes na televisão. As brigas começaram e o clima entre eles ficou tempestuoso. As famílias intervieram, colocando os famosos panos quentes. De nada adiantou. A posição de Pedro era irrevogável, definitiva. Para que colocar filhos em um mundo cada vez mais violento, sem espaço, insensível? Não, mil vezes não... Além do mais, já pensaram na série interminável de dissabores? dizia, solenemente: Noites infinitas sem dormir, fraldas imundas pelos cantos, choro, doenças, mais choro... Ah, mas o sorriso do bebê compensa tudo... alguém retrucava. Qual o quê!? Não dura dez segundos e lá vem mais choro. Vale a sábia definição: criança é como um tubo com dois buracos descontrolados, um na entrada e outro na saída. É triste, mas é real. Depois crescem, vêm as birras, os ciúmes freudianos, as miseráveis festinhas infantis... Não, Pedro não merecia tal calvário. Estava cada vez mais convencido de que iria fazer a coisa certa. Arrepiava-se todo imaginando que, aos domingos, precisaria levar o moleque para os parques de diversão. Só de pensar nisto aparecia uma ânsia de vômito... E, depois, viria a escola... agüentar professoras deprimidas, coleguinhas insuportáveis, e os pais, ah, estes iriam competir desenfreadamente entre si ... o meu filho joga futebol igual ao fulano da seleção, a minha vai ser modelo, o meu , a minha, os nossos. Aí, os anjinhos cresceriam e se tornariam adolescentes, buço, voz alterada, horas incontáveis ao telefone e no banheiro, olhares desaforados, apetite voraz, ataque aos seus cremes de barbear ou aos cremes de uma Juliana eternamente cansada e cheia de lamúrias. Anos depois, já crescidos, iriam se casar e, horror dos horrores, netos. Quem iria ajudar na criação? Claro que seria um Pedro já velho e desiludido. E, caso o enlace se rompesse, voltariam para a casa em busca de apoio e a história não teria fim. Decididamente, não. Pedro continuou a ponderar: Sabem o que é mais complicado nesta história toda? É que, invariavelmente, após o nascimento de um filho, há uma necessidade inexplicável de se projetar outro. É inacreditável esta odisséia humana... Não queiram entendê-la, desistam , mas, se puder, não participem dela, bradava Pedro aos quatro céus. Os meses se sucederam. Naquela ensolarada segunda-feira de dezembro, Pedro sai para o trabalho com uma tranqüilidade bovina. Vai a pé, apreciando o que resta de árvores no caminho que percorre diariamente. Consegue ouvir o piar de algum passarinho. Respira profundamente. Como está feliz! É um homem livre agora. E cheio de projetos. Quer fazer aula de natação e jogar xadrez com os primos. Pretende fazer uma viagem à Africa para ver de perto leões e elefantes, antes que eles desapareçam do planeta. Ficou bastante satisfeito com a última conversa com a esposa. Depois de muita argumentação e também de infindáveis discussões e até algumas brigas mais sérias, ela finalmente o apoiou, desistindo da idéia de gerar pimpolhos. Pretendem adotar ainda este ano dois gatos abandonados: Félix Pedro e Herodes. No próximo ano, três vezes por semana, à noite, irão praticar ioga; nos finais de semana, breves, mas agradáveis viagens. Noites bem dormidas. Nada de sobressaltos. Tranqüilidade absoluta... Pedro sabe que haverá uma vida serena para ele e a esposa. Poderão imaginar e planejar todo o futuro com poucas possibilidades de alguma mudança significativa. Não resta dúvida que este porvir será quase um paraíso. E, como em um filme, Pedro consegue imaginar até os momentos finais, profundamente reveladores: a visão recompensadora de os dois passeando de mãos dadas nas pracinhas, só parando para comer pipoca, em um namoro feliz que vai durar até ficarem bem velhinhos, olhos nos olhos, mesmo que embaçados por alguma insidiosa catarata que porventura insista em se instalar. Dedico esta história à minha querida irmã Maria Lucília, mãe do Zeca. |
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