Atualização 185 - Tema Livre
BIOGRAFIA
UM TEMA LIVRE
João Gilberto Engelmann

Eu sou um corpo e que está cansado. Não se trata de um corpo cansado, assim, numa proposição mais simples, uma assertiva mais vaga, um terreno mais fácil para as razões do mundo. É Todos somos este misto de complexidade, absurdo e trivial. As coisas com as quais me deparo nos dias de vida que cortejam o tempo, serve para que eu os veja mais de perto. E quanto mais me aproximo das coisas como de fato são, mais parece que é na imaginação e loucura que residem os melhores acertos.

Ontem, quando o sol já tão fraco ilumina somente como um alaranjado fosco; quando o crepúsculo transpassava uma pouca luz turva e tudo se via disforme; quando a garganta já havia proferido todas as verdades, verossimilhanças e falcatruas; quando tudo já teria dado o que se delas espera; aí então que o mais afoito fez-me chocar. Porque as amizades são sempre trens de pouso para as carcaças corroídas até a alma com as ferrugens do dia-dia. E também elas sintetizam alguma leveza de espírito e respeito mais chegado. E todo provérbio que diz que isso basta desde que não se tenha posto as amarras da vida do corpo, e com elas as prepotências e arrogâncias do pré-espírito, está dizendo uma grande verdade. Quando a alma graceja pelo simples estar junto e tudo que se tem são coisas que valem muito, mas que angariam pouco ouro e pompa, aí então é bom que se preservem as coisas. Mas quando tudo o que é tido e sentido não passa de um duplo engano e o pragmatismo e esperteza soam como melhor companhia, então é melhor que as malas sejam feitas porque o que lhes resta é, senão outro, uma grande viajem.

Eis que as pessoas sabem o que melhor existe para suas vidas. Todo conselho, de amigo ou do verdureiro, servem, no máximo dos exageros, para proferir uma oportunidade de medir a própria razão diante do rall das coisas. Quando homens sabem o que desejam para a ereção da parte inacabada de seus destinos, então nada se lhes pode ser dito. E todos nós, que somamos mais imperfeição e crença, dizemos que se pode realizar os mais longínquos sonhos da imaginação utópica, fazer as mais imprudentes coisas e proferir as mais dolorosas verdades, porque as metáforas da vida servem como tapa na face para acordar os que pensam a vida mais simplesmente.

E agora, que se tem o encaminho da vida e a sorte é só sorrisos, e onde também sorte e azar são somente pontos de vista distintos, não se deve querer que sentimentos tão em desuso sejam primados e postos como imprescindíveis e úteis.

E por certo, já somo que meus amigos são poucos. E também isso é uma grande preocupação. De outrora válidos e tantos, aquém da minha mão forte e frágil, agora distantes e mais enfraquecidos.

E tão somente a mim resta a verdade das coisas que me gritam que devo, sem a sombra do sol que já se pôs, saber que tudo é culpa de um só que agora escreve. Por certo é dito que tudo isso é patologia que não tem recreio e remédio. Porque o que se é depois que todos vão dormir, isso não há espaço na mentira. A nudez é sempre uma grande verdade confidenciada somente a nós e que, sempre sempre, não compartilhamos. E então aparece um tempo. O tempo em que ter as horas disponíveis não faz mais nenhuma diferença. De se ter o dia e a noite para conversas e conhaques é tão fecundo quanto a tentativa de erguer halteres como os olhos. E então se passam as horas. E sessenta vezes os minutos, e os segundos e os dias inteiros. Sessenta vezes isso tudo são as pessoas que passam. Alegres, também tristes, mulheres e homens e seus amigos. Todos os que têm aonde ir e com quem andar ou ficar. Mas é tempo de vê-los à noite. E passam do mesmo jeito.

Suas companhias são bem arrumadas e seus pujantes fraques são dum bom tecido. E agora correm. Andam depressa. São lentos, mas o que se lhes atribui é essa felicidade no rosto que retumba à minha janela. Eu os registro para que não fujam. Para que sejam um pouco de mim neste dia. Para que se intrometam nessa minha vida. Para que digam que estou demais no balcão de casa. Mas passam tão animados que, quando raro olham, isso já não lhes faz diferença. Só sabem que por ali devem passar. E se se pára, é coisa de amarrar os calçados.

Agora devo pôr-me à rua. Andar por algum canto de gente. Mas o ânimo que me insurge é pouco vigoroso e estou à janela. Não posso sair de casa agora. Acaso estarei longe quando alguma amizade fazer soar a porta, à minha porta? Estarei para abri-la e dizer um olá. Aí é que se pode querer sair. Depois de tudo ser bem servido e a porta encostada ao passo que se avise para que volte. E que também não se tarde muito. E que também nunca esqueça o caminho como acontece com inúmeros. E são tão mais felizes. E são assim alegres.

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