Atualização 185 - Tema Livre
BIOGRAFIA
SOFIA
Isaias Edson Sidney

A teia entretecida tinha o tamanho todo de mim. Sabia. Não daria, é claro, o braço a torcer. Mas o enredo era o que dele se esperava: a vítima, no caso, eu, não teria como se safar. Então, entreguei-me. De carne e ossos, e desejos. Muitos desejos. Sentia-me até bastante bem, no papel a mim reservado, de mosca tonta a debater-se sem muita vontade, de vítima que ama o carrasco que lhe coloca no pescoço a responsabilidade da própria morte. E morrendo a cada dentada de suas mandíbulas, eu passei a viver. Não importava que nacos de carne fossem fazer-me falta. Mais valia o prazer de vê-la ficar mais bela a cada dia, do que a dor de ver-me deglutido. Sobreviveria? Talvez. Se me entregasse todo, se passasse a viver a vida que era a dela. Naquele momento, se me socorressem, negaria socorro. Se me dissessem que era louco, assumiria a loucura. Nada, portanto, podia impedir que o casulo em que me transformara fosse a condição prévia de minha inserção no mundo de Sofia, a aranha negra de minha louca obsessão. Tinha tudo, ou seja, eu lhe dava tudo: casa, condição social, riqueza, viagens, até um pouco de minha celebridade tinha eu passado para o âmbito de sua teia, que me apertava mais e mais a cada volta da aranha em seu entretecer planejado e bem delineado, em ondas de seda e arminho que se espraivam pelos meus domínios. Mas, naquele instante, eu pensava: nunca desejaria me livrar, era o prisioneiro mais feliz do mundo. E fazia da minha música o culto a Sofia, entretecendo tons e sons, melodias e ritmos, a garganta rouca de tanto espalhar pelo mundo o meu encantamento. Encantamento por Sofia, é claro, pela vida dentro de sua teia. A banda era o sucesso absoluto, embalada por minha música, uma música que eu também tecia e tirava dos linhos e arminhos de dentro de Sofia, já onde eu morava há muito. Cantava o canto cigarrar, o canto da terra, o canto mais profundo que um ser podia entoar, para embalar multidões, ganhar mais e mais dinheiro, para que a teia de Sofia se sofisticasse em rendilhados de ouro e púrpura, para que a prisão de seu amor e o lento deglutir de todo o meu ser fossem a memorável onda da vida que se transforma em nada. Acreditava que, assim que me integrasse totalmente ao ser aracnídeo que eu amava e que me amarrava em seus desígnios eu chegaria ao nirvana, ao prazer absoluto e total. E eu seria ela e ela seria eu, e a teia então teria o tamanho do mundo. O plano perfeito para a morte de uma celebridade do mundo do rock, a desintegração e reintegração num outro ser, o desaparecimento em plena juventude e no auge da fama. Chorariam por mim os meus fãs, choraria por mim o mundo. E eu estaria lá, pleno e belo, num camarim de fios de ouro e púrpura, abraçado por Sofia, sugado por Sofia, entretecido pela teia de Sofia, eu e Sofia, Sofia e eu, embrulhados, encasulados, entretecidos por único fio sem fim, sem começo, um ser absoluto de teias emaranhadas, unidos enfim no orgasmo final e total. E foi assim, desse modo exato e desse jeito claro e preciso que nos encontraram um dia, em nosso leito nupcial, ela sobre mim, já fria, fria, e eu, bem, eu me fazia de morto.

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