SABOR
AZUL DO CÉU
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Flora
Rodrigues
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-Beija-me.-
Disse ela de pé, para ele sentado a seu lado em cima do muro. Ele
espantado, concentrou-se no silêncio que antecedera estas palavras.
Devia ter imaginado algo. Desejava-o com tanta força que imaginava
ouvir a voz ligeiramente rouca e doce dela pedir-lhe: beija-me. -Ouviste
o que te pedi? -Desculpa,
pensei que estivesse a imaginar. -Porquê
não me queres beijar? Perguntou ela num misto de tristeza e divertimento,
mas honestamente intrigada. -Sim.
Quero. É o que mais quero. Não me estás a gozar? -Porque
haveria de o fazer? -Não
sei... -Pára
com isso e beija-me! -Mas. -Mas
o quê? -Mas
eu só tenho doze anos e tu já tens catorze. Ela riu-se. -Tens
com cada uma. Quero lá saber disso. Conheço-te desde que
nasci. Hoje é o dia perfeito para me beijares. Foi assim,
sentado num muro por ser mais baixo do que, ela, à luz da estrelas
e do luar, que ele deu o seu primeiro beijo. -Gostaste?
- Perguntou-lhe ela. Ele ainda
estava a viajar por entre a lua e as estrelas sem acreditar. -Devo
estar a sonhar. -Não,
não estás. E voltou a beijá-lo. -A que
te soube? - A azul
do céu, se as cores tiverem sabores este é o teu, sabes
a azul do céu! E eu? -A amoras
frescas acabadas de colher. -Agora
vamos para as nossas casas que já é tarde. -Amanhã
encontramo-nos? -Sim. - Disse ela com um brilho igual aos das estrelas nos olhos. Mas não voltaram a encontrar-se senão passados dez anos. O tempo não passara por ela e a sua voz era inesquecível. -Dá-me licença? Ele virou-se. -És tu? És
mesmo tu? -Eu quem? Respondeu
ela divertida sem o reconhecer. - Não te lembras de mim? Crescemos juntos, brincávamos no muro junto ao telheiro de noite, fingíamos que éramos gatos e tudo o que se possa imaginar, um dia desapareceste e nunca mais soube ti. Tinham mudado de casa. -Sebastião? Não acredito! -Lançou-se-lhe nos braços como se fossem crianças de novo. -Desculpa esta é tua namorada? - Perguntou um pouco atrapalhada notando uma presença feminina ao lado. Ele riu. -Não, não
tenho ninguém É apenas a menina da loja. -E tu? -Nem namorado, nem marido. Mas chega aqui. Há uma pessoa que te quero apresentar. Junto das prateleiras
de livros infantis estava um menino cujo perfil era indubitavelmente o
dela. -Este é Sebastião.
O meu filho. Foi por isso que parti sem nada dizer. -O teu filho? -Vamos tomar um café? Dirigiram-se para
a cafetaria da livraria. -Sim. Foi por isso
que te pedi um beijo naquela noite. Queria imaginar que ele era um pouquinho
teu. -E o pai? - Nunca mais soube dele. Depois dele fazer o reconhecimento da criança nunca mais o vi. É o Mateus que era da minha turma. Os pais mandaram-no para Londres para casa de uma tia-avó. No entanto os pais dele mandam dinheiro todos os meses para o neto. Mas não o querem ver. Também sofri tanto que não preciso de mais nada e nem quero ver a cara de ninguém daquela família. -Porque não me disseste nada? Eu tinha-te ajudado. -Porque não
queria destruir a imagem romântica que eu sabia que tinhas de mim.
Além disso eras uma criança inocente. Dois apenas de diferença,
eu sei, mas naquela altura era uma diferença enorme. Mas queria
que tivesse sido teu, por isso quis sentir o teu sabor. -Olá Sebastião... -Olá. És
o amigo da minha mãe que diz que as cores têm sabor? Sebastião sorriu. -Ela contou-te isso? -Sim, perguntei à
minha mãe a que sabiam os beijos. Ela respondeu que um dia um amigo
lhe disse que sabiam a azul do céu. -Sim fui eu. Porque
quiseste saber? -Queria saber porque
me chamava Sebastião e ela disse que foi por ser o nome da única
pessoa que gostou dela de verdade e lhe deu o beijo mais saboroso do mundo. Ele olhou para ela
e ela enrubesceu como se tivesse catorze anos de novo. Ele nunca a esquecera,
mas o amor magoara-o demais. Fora o seu primeiro beijo e a sua primeira
desilusão. -Sempre pensei que
fugiras de mim por causa daquele beijo. -Oh não, nunca., os meus pais não me deixaram falar com mais ninguém, desculpa eu não te quis magoar... -Agora percebi. Foi
bom ver-te. Tenho de ir para a missa. -Vais à missa? -Não. Vou celebrá-la.
Sou o novo pároco desta paróquia. Ele vislumbrou uma
nuvem de decepção nos olhos dela e como que em jeito de
se desculpar disse-lhe: -Eu nunca te esqueci,
pensei que te perdera para sempre. Querem vir assistir? -Com certeza. - Disse
ela. -Não te volto a perder. Posso ter-te perdido como homem, mas hoje vejo que nunca te perdi como irmão de amizade e isso vale mais que mil paixões. - E seguiram de mão dada até à igreja. A multidão cochichou entre si. E muitos rumores soaram nos anos que se seguiram. Mas nunca as vozes do povo tiveram razão em falar. Passados trinta anos. Encontravam-se ambos debaixo do telheiro. Ela de pé. Ele sentado no muro. -Beijas-me? - Disse
ela. Ele não respondeu,
deu-lhe ao de leve um beijo na testa. -Não. Beija-me
mesmo, só por esta vez. -Sou um padre. Sabes
que não posso. -Só por esta
vez. Ele não resistiu
e beijou-a. Ela nunca perdera o sabor a azul do céu. -Porque me pediste
para te beijar? -Porque queria levar
o teu sabor a amoras frescas acabadas de colher comigo. Prometes-me tomar
conta do Sebastião? -Sim, embora ele já
seja um homem feito, mas porque me pedes isso? -Porque tenho de partir. - E dizendo isto desfaleceu nos seus braços adormecendo para sempre. Nunca um serviço
fúnebre lhe fora tão doloroso, mais a mais, por sentir que
aquelas almas presentes o condenavam. Como se pode condenar
um amor tão puro? Nunca ninguém acreditaria que em cinquenta
e dois anos de existência a amara sempre e só tinham trocado
dois beijos, mas a coincidência do filho ter o seu nome também
não ajudava. Só quem amou verdadeiramente acreditaria num amor tão puro. Não se importava com o mundo. Olhava o céu, queria encontrá-la. Ainda tinha o seu sabor a azul do céu, na boca. O céu ganhara um novo significado na sua vida. |
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