NATÁLIA
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Fatima
Reis
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Natalia
acordou sentindo as costas doerem tanto que ardiam. Sentir que sofria
à toa era um castigo. Tão jovem e ao mesmo tempo, tão
calejada. Por isso as costas lhe doíam daquela maneira. Cansaço
de carregar o mundo sobre os ombros. Virou de lado e o cheiro de mijo
do irmão menor penetrou-lhe na narina e ela foi se sentindo enjoada.
Cheiro de mijo forte, quente, misturado com mijo antigo dos quatro irmãos
menores que dormiam naquele mesmo velho colchão. A ponta de seus
pés bateu nas costas da sua avó que dormia atravessada na
cama. Natália encolheu o pé. Ela tinha nojo da avó
e de suas pernas gangrenadas, cheias de feridas, que fediam, e que não
eram nada agradáveis à vista. Na noite anterior, o pai mais
uma vez chegara embriagado. Sua mais uma vez fingiu que não viu.
E antes que o sol nascesse e iluminasse o interior do barraco, Natalia
sentiu uma mão enfiar por dentro de sua calcinha. Sua boca ficou
seca. Seu queixo batia, fazendo um barulho engraçado. Seu tio colou
a boca em seu ouvido: - Shiiiiii...,
quietinha... E lhe enfiou o dedo com mais força enquanto com a outra mão, bulia seus pequenos seios que mal acabavam de nascer. Ela odiava a sensação que sentia. Medo. Nojo. Aflição na boca do estômago. Taquicardia. Um rancor desesperado que ela alimentava como moedas num cofrinho. Sentiu asco quando seu tio deu um gemido curto e o liquido quente e viscoso jorrou em suas costas. Mais um dia começava no barraco de pau a pique. A degradação e o caos só não eram piores que a aversão imperiosa que lhe devorava o corpo mirrado e ia comendo sua alma em pequenas colheradas. Panelas vazias, cheiro de mijo, gritarias, xingamentos, nenhum futuro à vista, tudo perplexo, profundo e deprimente. Mas Natalia vivia às turras com seus sonhos. Desejava ser modelo. Igual da televisão. Queria desfilar em passarelas com um gingado requebrado e cruzar as pernas em X. Tinha uma pele morena jambo, de olhos amendoados, dentes brancos de estalar no escuro lhe davam a certeza de um sucesso instantâneo. Diaba! Era assim que o tio a chamava nas noites em que calava de ódio, com a mordaça lhe apertando o coração. Natália
se sentia suja. Sabia que aquilo era errado. Mas não podia fazer
nada. Se contasse, alguém acreditaria? Acreditaria? Tinha 14 anos.
Tinha mente de criança, mas o corpo... Diaba.... Ela temia quando
chegava à noite e o cheiro de cachaça que antecedia a chegada
de seu algoz. Atrevido, vadio! Na escola,
a barriga vazia a impedia de prestar atenção no que a professora
dizia. Ela abaixava a cabeça. A professora não gostava.
Sentia-se afrontada. A aluna não prestava atenção
nas coisas importantíssimas que ela tinha para dizer - Menina
abusada! Vai mofar na 3ª Série. Não quer nada. É
uma burra mesmo. Natalia foi parar na coordenação. Nada dela mesma. Mas era preciso tomar providências. Conteúdos a dar, responsabilidades com os documentos, prestação de contas à Secretaria de Educação. Números,
números, números.... - Essa
menina é assim mesmo, não faz nada, é muito desinteressada.
Vai ver é doente. Precisa de psicóloga, bater um eletro
encefalograma, sei lá. Vamos chamar a mãe. - Natalia,
o que você quer da vida, minha filha? Adiantaria
Responder? Natália pensou olhando para as mulheres a sua frente
e pensou em falar: -Não
quero aborrecer ninguém, só queria possibilidades. A possibilidade
de não ser atazanada, de não ser estuprada todas as noites,
a possibilidade de comer todos os dias, de meus pais terem um emprego
e se não fosse pedir muito um vestido novo, com sapatos brancos!
Eu adoro sapatos brancos! Mas Natalia ficou calada. A professora se sentia
afrontada. -Notas
abaixo da média. Incompetente. Repetente. Insuficiente!Menina burra!
Não aprende! Tem 14 anos na 3ª série! Em casa
a mãe chora. A vida é dura. Sem emprego, vivendo de biscate,
devendo deus e o mundo. - Mãe
a professora não entende! -Você
é que não entende de nada! Eu não sei mais o que
fazer com você. Eu não sei ler, nem escrever. Não
aprendi na época certa, se não aprendi quando era pequena,
agora não tem mais tempo.... Tempo... O tempo passa, e Natália
vai ficando pelo caminho. -Mãe,
eu queria ser igual à professora. Queria ter educação,
falar baixo, sem erro de português. Queria me sentar com as pernas
fechadas, comer sem parecer esfomeada, ter caderno encapado com papel
bonito, queria ter o carinho da professora, mas não consigo. Não
consigo aprender a ler e escrever, embora esteja na escola desde os seis
anos. Obviamente eu tenho um problema sério, grave e irreversível.
Por isso, desisti. Naquela
noite, na escuridão da noite, seu tio finalmente lhe penetra. Não
havia mais pureza para roubar. Só lhe restava limpar o sangue do
colchão no dia seguinte. Lembrou-se da sua vó. A vida é
teimosa. No outro dia de manhã, quando o sol invadiu o cômodo,
a mãe descobre a mancha no colchão. -Diaba!
Bem que eu desconfiava! Fica atazanando a vida de seu tio! É por
isso que não aprende! É por isso que não aprende!
Agora você vai viver disso, sua imprestável! E Natalia virou modelo de pista, desfilou nas ruas sua pele índia e seu andar em X. Fez programa todo dia de manhã até de noite. Aprendeu a beber de tudo de cerveja, merla, benzina e solventes. Aprendeu a fumar de tudo de cigarros, maconha e pedras de crack. Quando Natalia completou 18 anos, morena, bonita de jambo, olhos amendoados de estrela, sonhos estalados de menina-moça, foi encontrada morta na cela da prisão onde estava presa depois de ter assassinado um homem, supostamente seu tio, irmão de sua mãe, com quatorze facadas no coração. |
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