OS
DEUSES VOAM
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Eduardo
Prearo
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Adalto
estava cansado das próprias irritações. Conhecia
a lei da causa e efeito, mas seus impulsos estavam muito além dela.
Ele xingava pessoas desconhecidas pelas ruas; ele queria ser simplesmente
silencioso e bom, um bom menino, mesmo com a idade avançando, mesmo
tendo mais de quarenta anos. Era domingo, um domingo quente de verão.
O mormaço e toda aquela gente passeando o incomodava. Pensou a
príncipio em ir ao médico, a um clínico geral, mas
depois decidiu que iria à farmácia. As coceiras haviam aumentado,
e ele não sabia o que eram. Dois comprimidos de clonazepam o acalmaram
naquela noite talvez sem estrelas. Na quarta procurara alguns terapeutas,
mas estava longe, bem longe de ter dinheiro para pagar os honorários.
Todos os terapeutas eram bons com ele na primeira consulta. Por que sentia
que desconhecidos olhavam para sua bunda, será que rebolava? Resolveu
ler alguma coisa, mas a preguiça era grande. Descobrira o poder
das pirâmides: elas lhe abriam o apetite quando colocadas sobre
o garrafão de água de vinte litros. Adalto tinha de voltar
para a prisão todos os dias pontualmente às seis da tarde,
e mesmo nos dias de folga podia sair. Na mesma cela dele estava Patrick;
ambos os dois haviam sido amigos de infância e estavam cumprindo
pena em regime semi-aberto há mais de cinco anos. Adalto conseguira
alguns empregos, mas eram bicos. As pessoas se afastavam dele como o diabo
da cruz. Sim, ele realmente achava que tinha cara de bandido. Fugir era
praticamente impossível, haja vista que sua vergonha era tal que
não conseguia olhar para cara de ninguém em lugar algum,
nem mesmo para a de Patrick. Quando acordou, na segunda-feira, estava
se sentindo feliz, mas não sabia exatamente o porquê. Talvez
o passeio pelo parque tivesse-lhe feito bem: aquelas pessoas sadias e
sem antecedentes vivendo suas próprias vidas, pareciam felizes.
Não quis acordar Patrick, e às sete e meia teria de estar
no refeitório. Hoje farei o que?, pensou, já que a crise
do novo século não era de brincadeira. Tinha de conseguir
um emprego logo. Haveria de passar por mais dois anos naquele regime semi-aberto,
um regime semi-aberto meio que abandonado. Às oito estava na rua,
sem saber o que fazer. Ninguém no presídio dizia-lhe o que
fazer a não ser que era para ele sair em tal horário e voltar
em outro tal horário. Na verdade, o presídio era um deserto
naquela ala em que ele e Patrick viviam. Foi à biblioteca terminar
de ler um romance. Proust. Mas acabou cochilando na poltrona dura. A biblioteca
da cidade parecia um museu. Lembrou-se de que há um ano, mais ou
menos, uma funcionária de lá lhe sorriu; na certa não
sabia que ele era um presidiário, que era o Adalto. Às cinco
da tarde, levantou-se, saiu para a rua e viu centenas de pessoas enfileiradas
nos pontos de ônibus, voltando obviamente dos seus serviços.
Umas riam, mas a maioria estava calada e satisfeita. O trânsito
estava caótico, para variar. Adalto bocejou e resolveu voltar para
o presídio à pé. Não imaginava ainda o que
faria quando saísse daquela condição, afinal não
arrumava emprego, e estavam pouco se lixando para ele. O mundo estava
pouco se lixando para ele. Pela Lei eram obrigados a darem emprego a ele
e a Patrick, mas resolveram que os deixariam soltos, sem necessidade de
os encaminharem a comunidades agrícolas, pois viam aquele caso
como excepcional. Adalto deu uma olhada nas vitrines de um shopping em
que não ousou entrar: coisas modernas que pouco lhe atraiam. E
os carros, os carros estavam cada vez mais feios, como ele. De volta encontrou
um Patrick cabisbaixo, sentado no alto da beliche, com as mãos
entre as pernas. "O
que fez hoje, Patrick?" "Nada.
Ou melhor, fiquei lavando o chão do pátio com os outros.
Para que sair? Almoçou?" "Não.
Mas fiquei pensando em fugir para outro Estado, bonitão." "Lá
seria pior, você sabe. E nem pense em fugir para o exterior, é
burrice. Os estrangeiros nos destratariam, e além do mais nossas
fotos estão espalhadas pelo mundo todo. Imagine um estrangeiro
cuspindo na sua cara, no seu caixão!" "É
verdade, você sempre diz isso, Patrick. Mas eu, nesses anos todos,
nunca me imaginei fugindo para o exterior. Nem o português sei falar
corretamente! Queria fazer uma terapia, tentar descobrir por que acabei
aqui, mas é mui difícil." "Disseram-me
que vão nos matar." "Como
assim?" "Disseram-me
que está dando certo sermos vistos pelo povo como degenerados,
servindo como exemplo, mas que o ônus que provocamos não
compensa muito. Mas a emenda que diz que nós dois devemos ser esputados
pelo mundo nunca será revogada." Adalto
conhecia na rua somente Magda, e Magda era esquizofrênica, vivia
crisada sentada nos bancos das praças, decepcionada com a vida
menos do que arquitetando planos diabólicos contra tolos como ele.
Ela era muito magra, massava quinze quilos a menos do que a própria
altura. Sempre quando ia ao parque a encontrava. Ela tricotava, e desta
vez estava tricotando um cachecol laranja. Ao aproximar-se dela, notou
que ela havia cortado o próprio rosto. Sentou-se ao seu lado, tendo
o cuidado de não encostar a coxa na coxa dela. "Olá,
Adalto, olhe que cachecol lindo estou tricotando! Estou nervosa, pois
acho que irão me despejar. Você também não
ia ser despejado?" "Moro
no presídio, Magda. Meu despejo é a morte. "Que
bom, mas nem o cemitério é mais seguro. Nesse albergue ou
presídio servem comida boa?" "Sim,
às vezes sim. Ontem Patrick parecia estranho. Estava abatido, não
quis sair. O carcereiro não está nem aí pra gente,
sabe que a gente é doente. É verdadeiramente estranho estar
preso e livre ao mesmo tempo. Preso no próprio corpo, preso em
um planeta. Hoje vieram me pedir autógrafo. Sabe né, sou
famoso no mundo inteiro. Mas ninguém me agrediu. Que bom. É
fácil tricotar?" "Facílimo.
E o emprego novo, não disse que tinha arrumado um bom?" "Sim,
mas o carcereiro não gostou, achou um emprego bom demais para mim.
Pensei em pegar um bico de planfeteiro hoje, mas agora é proibido
panfletar. É por causa das enchentes, creio." "Por
que não dá uma escapadinha para o mar?" "Não
gosto mais de mar. Estou com tanto sono. Mudaram os remédios. Acho
que vai chover. Você que é tão sensível poderia
me dar umas dicas de como eu me esgueirar dessa situação." "No
seu caso não há saída. Em qualquer parte do mundo
seria discriminado, preso. Esputar na cara de um presidente é um
crime hediondo. Vem com Patrick, amanhã. Aposto que vocês
têm um casinho." "Não
me venha com essa, Magda. Patrick e eu somos apenas bons amigos. Daqui
a pouco já é hora de eu ir. Ah, tive que correr de uma gang.
Não adianta disfarces no meu caso. Sou mesmo feio, estigmatizado" "Tá,
tá, então dá o fora." Adalto
foi caminhando de volta à entrada do parque e sentiu vontade de
comer um doce, mas um doce especial, talvez um chocolate recheado com
morango. Com as poucas moedinhas que tinha, comprou um chocolate branco,
dulcíssimo, recheado com amendoim. Como nunca almoçava,
devorou-o. A moça que lhe vendeu o doce veio com o papo esquisito
que vinha de gente desconhecida. "Adalto,
você é o centro do mundo há anos. Nós temos
tantos problemas por sua causa. Já viu ali naquele muro seu nome
pichado?" "Nem
tomo conhecimento. Sabe, acho que essa populaça desconhecida até
gosta de mim." "E
como! Agora vai saindo de mansinho senão posso perder meu emprego.
Você é o carma desta nação, quiça do
mundo. E pensar que se paga seus vícios e comida com o dinheiro
do contribuinte. Isso me revolta." "Penso
em suicídio." "E
eu com isso? Mas não se mate não. Leva uma vida boa, até.
Você deve ter sido um homem bonito. Dá o fora, garoto velho!" "Estou
indo. Mas não se esqueça que graças a pessoas como
eu vocês são o cúmulo da honestidade." Adalto
sabia que estava falando o que falavam para ele com frequência,
ou seja, ele ouvia amiúde a expressão "graças
a mim" de alguém. Choveu de repente, e ele correu à
procura de um abrigo. Ouviu alguns berros medonhos de gente que o reconheceu,
e percebeu que estava atrasado, pois já passava das cinco e meia.
Se chegasse atrasado ao presídio sofreria tortura. Uma senhora
idosa passou por ele, e adivinhando seus pensamentos disse: "Vai
se atrasar hoje por causa da chuva, seu monstro! Tomara que lhe deem choques
nos culhões." Mas Adalto
chegou a tempo, encharcado. O carcereiro estava esperando-o com um presente,
um travesseiro de penas de ganso. J., o carcereiro, gostava dele, e a
palavra gostar era algo tão distante para Adalto! Remorso era a
última coisa que sentiriam por ele. Agradeceu a J. e foi se deitar,
completamente nu. Patrick jazia como um vampiro. O inverno estava chegando;
Adalto preferia o inverno dentre todas as estações, pois
costumava hibernar nessa época. Com seu novo travesseiro, sentiu-se
um pouco feliz. As crianças, essas ainda não o conheciam
bem, não tinham muita noção do que ele fizera, e
talvez no futuro ele fosse esquecido. Mas era só uma pequena esperança
diante de um estigma que o tempo não ajudaria a apagar. O mundo
não mudaria. Veio-lhe à mente, então, o antes, o
antes dele se tornar o marginal do fim dos tempos. Se ao menos tivesse
terminado a universidade, mas não teve como terminá-la sem
um centavo no bolso. Muitos dos universitários da época
já sabiam o que ele se tornaria. Na verdade, ele estudara pouco
na vida. Ou era burro mesmo. O outdoor do momento era uma foto dele segurando
um cigarro com o rosto todo melecado de cuspe: uma bela montagem. Muitos
outros marginais, ou mesmo não-marginais tinham ciúmes dele
por causa da fama. Marjorie surgiu, naquela noite, como num filme em preto
e branco. O mar
está agitado. Marjorie apanha seu casaco de pele de onça
e diz que vai voltar para o apartamento, que não quer mais ficar.
Está serena, levemente triste, talvez por causa da perda do bebê.
Digo que não vou, que vou ficar mais um pouco, pois gosto de ver
navios. Ela me xinga de afeminado. Ela sempre me xinga de afeminado, e
não sei se é mesmo um xingamento ou uma espécie de
decepção por eu não ser o homem que ela ainda deseja
encontrar em mim. Estamos no século vinte, ainda tenho cabelo,
a calvíce é incipiente. Ela tem outro homem, um homem mais
viril para suas necessidades mais animalescas. Não me importo,
desde que ela fique comigo, me acalante em seus braços, me tenha
como seu bebê. Fomos ao píer, ontem, e ela me propôs
uma viagem. Quer ir para a Europa. Eu lhe perguntei para que gastar dinheiro,
o dinheiro dela?, e lhe disse que não gosto de viagens longas,
que tenho medo de avião. Aí ela disse que convidaria então
uma amiga, que muitos dariam o mundo para viajarem com ela, que eu cuidasse
bem da casa da praia, mas sem muito dinheiro. Isso significa trabalho.
Claro, eu tenho algum dinheiro, faço traduções, mas
ultimamente os clientes reclamam, e não somente os clientes, a
vizinhança também por causa do barulho que faço.
Solfejo trechos de óperas. O dia da viagem chega, é o dia
seguinte ao papo no píer; Marjorie parece ansiosa. Está
levando pouca coisa. Ela nunca foi à Paris das luzes. Nem eu. A
nicotina está me tornando enrugado. Ela me dá um beijo de
despedida e sussurra algo sobre o gosto de cigarro. Diz pra eu não
quebrar nada, nem furtar nada pra sair por aí vendendo. Pelo que
me lembre nunca fiz isso. Ela diz também pra eu cuidar bem do Hitler,
nosso vira-lata. Sinto-me de repente Carlitos com o Hitler. Ele é
o meu companheiro. Sei que terei outro companheiro no futuro, mas humano,
e ele será obrigado a me aceitar. Ou será o contrário?
Marjorie dá a partida no carro e se vai. Corro para o quarto, e
como já são oito horas, ou melhor, sete da noite, visto
o paletó furta-cor, pego a moto e saio rumo ao lugar que me vem
de súbito na cabeça: o bar de Tom. Tom está sério
esta noite, algo meio pessoal. O que será que andei aprontando?
Nem imagino. As pessoas são muito sensíveis. "Como
vai sua mulher?" "Foi
pra Europa esta noite." "E
por que não foi junto com ela?" "Medo
de avião, e também...amigo, deixa isso pra lá. Me
vê uma dose de uísque?" "Não
estou mais vendendo fiado, Adalto. Faz dois meses que você não
paga a conta aqui. E olha, é melhor ir se mandando." "O
quê? Tom, você deve estar brincando comigo. Ninguém
muda de personalidade de uma hora para outra. Até anteontem estávamos
rindo juntos. O que deu em você, amigo?" Tom vira-se
e vai atender outra pessoa. Não me sinto uma pessoa, mas um bicho,
uma bicha, um ser indecente. Apoio o queixo na mão esquerda com
o cotovelo sobre o balcão. Fujo. Com a moto a cem por hora, sigo
pela encosta. Diviso as ondas por causa da Lua. Preciso falar com Medéia,
ela é meu porto seguro, me dá conselhos. Subo o morro, a
estrada é espiralada. Há velas acesas, Medéia está
em casa. Ela abre a porta e me abraça. Ela me abraça docemente. "O
que houve com meu menino?" "Já
sou um senhor, Medéia, não se esqueça." "Entre,
está tão abatido! O que foi que aquela megera lhe fez desta
vez?" "Nada.
Ela foi para a Europa. Partiu esta noite." "Que
alívio. Mas estou preocupada. Essa sua mania de isolamento está
evoluindo meio que depressa. É o seu Saturno, eu sei. Dê
graças à vida, meu caro. Pena que você não
pensa no futuro, em guardar um dinheirinho. Torra tudo com bobagens invisíveis.
Estou preocupada. Essa sua vida é estranha, aliás, nossas
vidas são estranhas. Arrume uma garota, divirta-se. Bom, por aqui
não há muitas garotas, mas então arrume um garoto." "Medéia...como
sacerdotisa você me dá cada conselho!" "Faça
o bem ao próximo, Adalto. Não se esqueça de sempre
deixar Marjorie pensando que você depende dela para quase tudo.
Nossos assuntos são altamente confidenciais. E já que não
tenho aqui comigo meu agente predileto, tenho-lhe uma missão das
mais ou menos perigosas." "Se
der muita grana eu topo. Arrisquei-me demais na última missão.
Que bom que pensou em mim, mas..." "Mas
nada. Você irá...irá pôr explosivos em um navio
cargueiro atracado no cais. Na verdade, os homens que o ocupam são
terroristas e planejam um ataque ao centro da cidade. O nome do navio
é Sofhie VIII. E você terá que fazer isso esta noite
ainda. Entrará na embarcação como um prostitutozinho.
O que comanda a naviarra desmunheca e adora tipos como o seu." "Acho
que terei de ser um bom ator. Nunca fiz teatro." "A
humanidade, meu querido, é uma boa atriz, não se preocupe.
É só fazer essa sua carinha de fácil ao extremo que
tudo dará certo. O importante é colocar os explosivos nos
lugares que vou determinar. Olhe, aqui está o mapa do navio. Você
conhece bem toda a nossa parafernália ultramoderna. Apertaremos
os botões daqui. Trate de alojar os explosivos com carinho. Tomara
que se divirta um pouco." "E
se..." "E
se inexiste, você ainda não aprendeu? Quanta incompetência.
Tome, vista estas roupas. São bem sexy. O comandante ou capitão
joga no outro time. Os explosivos estão aqui, veja: têm dez
centímetros de comprimento e três de espessura. Bastam esses
dez para a embarcação afundar." "Não
estou gostando muito disso, Medéia. Não procede gente estrangeira
e que desmunheca gostar de tipos franzinos como eu. Aliás, não
sou o tipo que atraia homens desde os vinte e cinco." "Eles
são machos, meu senhor. No caso a impressão que você
terá que dar é a de que você é quem desmunheca,
entende? Agora vá. Está sendo esperado. Seu nome é
Malcon. Aqui está a sua nova identidade." "Você
sabia de alguma forma que eu viria até aqui. Até preparou
uma identidade." "Vá
enfrentar a bicha calhorda imediatamente, por favor. Tenho muito o que
fazer." Pego
a moto e parto. O tempo mudou: algumas nuvens prenunciam tempestade. Corro.
Desço o morro pela estrada espiralada. Até o cais são
quarenta minutos. Sophie VIII, que nome estranho. Deus está comigo.
Parece que ninguém mais me quer, mas me sinto importante como agente.
Logo me encontro entrando no cais. Não há ninguém
a princípio, nem estivadores. Passo por um bar apinhado de estrangeiros,
passo por meretrizes, estou de repente defronte do Sophie VIII. Alguém
lá de dentro do navio me nota e acena. Sabem que sou Malcon, que
Malcon acaba de chegar. Subo, entro no convés,e lá está
ele, capitão Antonio. Ele sorri, ele gostou de mim. Ele me pega
pela mão e me leva para um alojamento de luxo. Ele me beija os
lábios, está sedento. Sou qualquer um, qualquer outro mais
ou menos como eu serviria para ele. Ele me tira a roupa com cara de quem
não me quer mais, mas se não há outro...Choro, mas
depois de tudo terminado acendo um cigarro e a tristeza é substituida
por murmúrios do pecado. Preciso distrai-lo, mas ele me quer mais
uma vez. Quero ir ao banheiro, e aí então coloco os explosivos.
A naviarra está deserta, meu coração nem tanto. Será
que estou apaixonado? Parto, prometo voltar no outro dia. Mas não
voltarei, eu sei. Sou um assassino o qual a dor é abrandada pelo
fumo. Acho que não tenho cultura. Dou partida na moto e volto para
a casa de Medéia. Ela nem me olha: abre o champanhe antes de apertar
os dois botões. Estarei rico dentro em breve; o crime será
abafado, pois trabalhamos para o governo invisível. Medéia
é aquariana, mas também tem Saturno mal-aspectado, e com
Vênus. Agora estou na casa da praia. Marjorie me ligou quinhentas
vezes. Amanheceu faz tempo. Paris não a receberia de braços
abertos, tenho certeza. Tenho meu trabalho, mas me sinto vagabundo, sempre
vagabundo. Volto à rotina de sempre. Costumam, gente desconhecida,
achar-me mole ou meio mole, não sei. A praia está deserta.
Não, há um homem. Estou apaixonado por quem matei. Não
tenho remorso. Estou no terraço, e o homem se aproxima de mim,
cumprimentando-me, perguntando-me em castelhano onde fica o bar Riviera.
Esqueci-me do bar Riviera; balbucio qualquer coisa, e o homem percebendo
que sou incapaz de dar uma informação recua. Mas eu lhe
peço que espere, que fique. Ele aceita, está trêmulo.
Entramos na sala, ofereço-lhe um drink, olho para sua sunga branca.
Ela está manchada. É um tarado, penso. Também devo
ser um tarado praiano, não sei. Tenho nojo de mim. Alan? Seu nome
é Alan e vem da Argentina? Sim, sim. Assistimos a um jogo de futebol.
Alan é quieto, heterossexual e talvez homofóbico. Falo um
pouco a ele a respeito de Marjorie, e sobre a família dela, que
é nobre. Eu e ela nos conhecemos na praia mesmo: ela estava linda
em um biquini cor-de-rosa; olhou-me de relance e parece que foi amor a
primeira vista. Alan está viajando, assim como Marjorie. Tenho
total confiança nele. É algo meio intuitivo, se bem que
não sou mais intuitivo, mas agora medroso, sujo. Convido-lhe para
passar a noite na casa. Ele diz que não gostou de mim, que não
foi com minha cara, que vai embora, e que agradece a hospitalidade. É
assim. Sou mesmo um idiota. Medéia sempre me fala que fazer amigos
com este meu Saturno é dificílimo. Anoitece. Tenho um oratório,
mas não vou lá nunca. Por que não me ajoelho e oro?
O ócio é inexpugnável. Reajo, tento escrever poemas,
mas eles saem medíocres como eu. Rosas
saem de dentro da cruz Leio
tão pouco, falta-me vocabulário. As consequências
da preguiça me amolam. Resolvo sair, ir até a cidade, mas
para quê? Lá talvez só ouviria coisas sobre o navio
que explodiu, que afundou na beira do cais por falta de cuidado dos marujos.
Não, isso já é passado para os praianos, fatalidade.
Pego a moto e saio. Tranco antes tudo, tranco a minha esperança
de felicidade. Marjorie sabe que sou doente, ela tem um dó de mim!,
um dó que não consigo ter, que não me permito ter
porque não dá em nada, assim como o que escrevo, como o
que falo quando falo sozinho, como o que solfejo. Algo me incomoda, estou
guiando. Eu sei o que é, é a sensação de que
serei sempre discriminado, de que deveria dizer que não pedi para
nascer nem tenho culpa de ser assim. Mas não me permito dizer isso
de mim mesmo. Talvez eu tenha pedido para nascer, vai saber. Mas não
vejo missão nenhuma na minha vida, uma missão verdadeiramente
nobre. Sou SRD, sem raça definida. O capitão era um homem
bonito, capitão Antonio. De qualquer forma ele morreria para mim,
pois homens bonitos geralmente são traiçoeiros como gatos.
Amei e matei. Parece prático isso, parece que cairei na mesma armadilha:
serei amado e morto, ou morto e depois amado. Estou a cento e vinte por
hora. O que vou fazer na cidade? Bem sei: entrarei em algum bar e encherei
a cara. Não gosto de ter amigas, prefiro amigos. Mas tenho mais
amigas, duas ou três. Sarah é uma delas. Se eu a encontrar
no bar que estou pretendendo ir, conversaremos horas a fio. Ela é
simpática, mas eu sou mais simpático. Sarah é traiçoeira
como a maioria das mulheres que conheço. Marjorie...bom, até
me esqueço de Marjorie. Os pais dela gostam de mim e isso basta
para ela, pois tem seus amantes. Marjorie é uma mulher que trabalha
feito louca; ela mesma se definiu assim certa vez. Deu certo no ramo da
informática. É empresária. Chego ao bar: Nichols
050. Odeio esse nome, odeio cigarros. Sarah realmente está lá,
é leonina do terceiro decanato. Não nos abraçamos,
apenas sorrimos um para o outro. Ela está bem acompanhada, o que
é uma pena. Os amigos dela não olham para mim, apenas ela
vez ou outra. É sempre assim. Os amigos de Marjorie também
são meus amigos mas somente por causa de Marjorie. Se eu e Marjorie
nos separássemos hoje, eles deixariam de existir com os anos. Mas
não quero me separar. Sarah finalmente está sozinha na mesa.
Os outros foram dançar alguma coisa parecida com funk. "Estou
me sentindo solitário." "Adalto,
gostou de meus amigos?" "Sim,
eles até que são bem interessantes." "São
todos bipolares, meu amor. João Paulo é casado com a morena,
Duty, e Carlos Alberto é gay. Os
três são bipolares. Você acredita numa coisa dessas?" "Difícil
de crer. A Duty é brasileira?" "Não,
não sei de onde ela é, mas não é brasileira.
Desculpe falar, mas você envelheceu, hein? Soube do navio? Dizem
que foi coisa de cinema, mas felizmente ninguém morreu. Havia três
pessoas a bordo...e elas estão sãs e salvas. O que foi?
Você em-pa-li-de-ceu." "Ninguém
morreu mesmo?" "Sim,
ainda bem, náo é? Mas o navio afundou. Dizem que foi um
atentado terrorista, imagine!" "Onde
estarão os sobreviventes agora?" "Que
pergunta, e eu lá sei, meu amigo? Na certa isso será esquecido.
Afinal, não temos terroristas neste país, e tudo foi uma
fatalidade. Mas agora vamos aproveitar e dançar também.
Notei um certo brilho nos olhos de Alberto quando ele te viu. Mas sei
que você não é gay, apesar de parecer frágil,
ou seja, fácil. Sinto lhe dizer, mas seu futuro me parece obscuro,
sabe. Sou meio vidente. Se Alberto lhe quisesse, o teria, com certeza,
eu sei. Mas fica frio, hoje estou com TPM, furiosa com todos. Você
é daqueles que talvez chegue aos quarenta nem um pouco realizado
e ainda por cima pobre. Não vai ganhar nada continuando com Marjorie;
toda a província sabe que ela mantém relações
extraconjugais. E esse seu sedentarismo me preocupa...mesmo eu não
pagando suas contas. Viver às custas de uma mulher não soa
bem. Saia dessa, estou lhe implorando, sou sua amiga." "Nossa,
nunca ninguém falou assim comigo, tão abertamente. Mas sei
que após os trinta e cinco, por aí, as lições
de vida serão mais escassas, mas não raras. Sou tão
imperfeito. Acredito em Deus, em uma Força Maior, e por mais que
peço a Ela que me auxilie, que direcione meu destino para o bem...Não,
não quero servir de exemplo negativo. Sou aquele tipo de libriano
inferior. Sempre acho que a maioria das pessoas são superiores
a mim. Talvez elas mesmas deixem transparecer superioridade porque não
me achem humilde. Que fim de semana está sendo este. Marjorie a
esta hora deve estar em Paris. Deveria ter ido junto, mas decidi que nunca
conheceria a Europa. Talvez para não revoltar pessoas como você,
para não contrariar os que se revoltam por eu levar essa vida boa.
Por que não tenho mais amigos? Se tenho bens materiais, deveria
ter mais amigos, você não concorda? É recorrente o
desprezo, a perseguição. Estamos na Era de Peixes e..." "Não
me venha com esse papo de astrologia novamente, meu amigo. Os que têm
talento para essa ciência não falam que o têm. E você
é um dos que não têm talento para interpretar uma
carta astrológica. É esforçado em algum sentido,
não sei bem em qual, mas não um batalhador. E esta nação
precisa de gente batalhadora. Eu sou uma batalhadora: acordo cinco horas
todos os dias, batalho, suo, ralo, vou à luta. Mas e você?
Sinto muito. Sofrerá discriminação para o resto de
sua vida. Deve ser terrível ser rechaçado continuamente.
A mulher na Europa, vivendo a vida dela, e você aí, sem ter
o que fazer, paradão. Não entendo você, Adalto. Daqui
a alguns anos ninguém lhe chamará de você, mas somente
de senhor, e sei que você irá sofrer por causa disso, ah
como sei. Peter Pan tem que apanhar para crescer?" "Acho
que me odeiam, que me perseguem um pouco, sim. Esse populacho desconhecido..." "Ninguém
te conhece. Vá a um psiquiatra. Claro que comentam por vezes que
um rapaz está se aproveitando de uma bem-sucedida empresária,
mas é só. Nem sabem como é sua cara. Se eu fosse
você me separava de Marjorie, ela é uma viúva negra.
Ela não te deixará um centavo, olhe o que estou te dizendo,
hein! Comentam por cima que um rapaz meio afeminado deu o golpe do baú
em Marjorie Clara, e é só. Você é transparente
para mim, é um homem perigoso na minha opinião, um homem
que consegue ointenta por cento dos seus segredos." "Se
intuição feminina não falha, então sou mesmo
isso, um perigo. Eu compunha músicas. Tive uma juventude de idiota,
talvez meio hippie. Por que você está chorando?" "Por
que não aceito o fato de você estar nessa vida, nessa situação.
Mas entrego-te a Deus. Sei, você compunha e agora acha que pecou
compondo. E você agora escreve poemas, sim, poemas, porque poesia
mesmo acho que nem sabe o que é. Você está se tornando
um perigo para a sociedade, eu sei." "Por
que me diminui como todo mundo,a gente sempre foi tão amigo?" "Só
acho que deveria estar mais próximo da sua família." "Minha
família é Marjorie. Incrível: você dando uma
de psicóloga? Não sei pra que vim a cidade, para me amolarem,
certamente." "Eu
sou uma pessoa boa." "As
pessoas boas ainda não cruzaram meu caminho. Sei que tem gente
que diz que amar é também dar chineladas, mas isso não
aceito. Tem alguma coisa mui imperfeita em mim. Sou um egoísta,
eu reconheço. Vou pra cadeia algum dia, estou profetizando." "Há
milhões de pessoas em situação pior, por que não
dá uma olhada para elas. Gente que não tem o que comer,
não tem teto e não reclama, gosta da vida." "Muito
obrigado, Sarah, pela atenção, mas acho que a partir de
agora não seremos mais amigos. Se meu caso é irreversível,
e já ouvi que era mesmo antes de saber que eu era um caso, de que
adianta essa ladainha? Reconheço: sou medíocre sim. Vou-me
embora. Se quiser, ligue-me. Você hoje não está muito
afável. O fato é que as mulheres são vingativas,
e nesta cidade, uma província montada de cidade grande, há
competição para ver quem é mais honesto, mais humano.
Mas os seres querem ser tão humanos que acabam sendo desumanos.
Sei lá se estou julgando, sei lá se sou desumano. Sim, devo
ser uma pessoa desumana pra saber o que é ser desumano. Tirar a
vida de alguém é desumano." "Você
matou alguém?" "Não,
nunca matei ninguém que eu saiba. A não ser que o coletivo
saiba e eu não." "Vai
embora, Adalto. Como é triste sua condição!" Dou a
partida na moto e fujo. Estou fugindo de que mesmo? Ah, de Sarah, ela
me apavora, me impressionou. Paro defronte de uma banca de jornal e tento
ler as manchetes: NAVIO EXPLODE E MATA TRÊS TRIPULANTES, DENTRE
ELES O CAPITÃO ANTONIO. Então Sarah sabe, sabe que sou um
agente. Sou mesmo transparente. Como ela sabe? Olho-me refletido na vitrine
de uma loja e me envergonho. Dou vergonha, sempre dei. Ligo para Medéia
enquanto dirijo. Ela me conforta, diz que fiz um ótimo trabalho.
Digo-lhe que sabem que sou agente, que minha amiga ou ex-amiga sabe, e
Medéia diz que as coisas vazaram por minha própria culpa,
que eu deveria tomar cuidado com o que falo, com o que escrevo. Medéia
é-me um calmante. Medéia diz para eu ir passar a noite ou
o que restou da noite na casa dela. Otimizo a ideia dela e subo o morro.
O caminho é estreito. "Oh,
meu menino, o que aconteceu? Como essa tal de Sarah descobriu?" "Ela
sabe, mas não tem certeza; está me sondando. Talvez fosse
melhor eu me mudar, deixar Marjorie, sair do país." "Aí
desconfiariam mais ainda. Deixe estar. Dê-me o endereço de
Sarah, sim? Eu vou providenciar alguma coisa para que ela não fique
mais desconfiada do que já está. Seu Saturno está
passando pela casa VII, a casa do amor. Nessa área as coisas não
andam muito bem, aliás nunca andaram. Maldição! Você
é um menino maldito, e o seu cigarro também. Na certa armarão
uma represália. Você não pode mais vir até
aqui, Adalto. Alguém pode estar te seguindo." "Paranóia
sua, Medéia. Tenho alguns bens, tenho a moto. Pelo que aprendi
as pessoas desconhecidas só perseguem as outras quando estas outras
são fracas e marginais. Fique tranquila. Todavia, temo pela minha
reputação. Você acha que acham que sou porco, que
não tenho higiene?" "Acho,
e acho que a maldição tende a se expandir com o passar dos
anos. Não o quero mais como agente. E além do mais, o dinheiro
desta última missão não veio. O governo invisível
se recusou a pagar pelo serviço. Sou tão boba quanto você,
e peço que não apareça nunca mais, meu menino. Sinto
muito. Sinto muito também por ser debochada, mas creio que se sua
vida fosse um filme ele se chamaria 'Dessa você não escapa'.
Um contínuo sentimento 'dessa não escapo' se apoderará
de você para sempre. E suas feições não estão
se enobrecendo: as bochechas estão engrossando, dando-lhe um ar
de bandido. Daqui a pouco não haverá mulher que não
grite para os filhos quando você passar, não haverá
mulher que não o tomará como exemplo negativo, falando ao
próprio filho que se não fizer umas coisas ficará
igualzinho a você." "Você
está me rogando uma praga, Medéia, é isso. Quer que
eu grite para o mundo que sou porco e malandro, quer que eu grite?" "Você
não é homem suficiente para mudar sua situação,
Adalto. É franzino, além de tudo, sedentário, não
faz uma academia, não desenvolve os músculos. Sabe aqueles
homens que fazem musculação nas academias na areia? Eles
carregam mais de cem quilos de uma só vez. Você não
tem um quinto da força deles. Você tem a força de
uma mulherzinha, de uma marimacho." "Já
chega, Medéia. Vou me separar de Marjorie." "Não
invente, acho que não será necessário." "Se
pude cumprir tantas missões perigosas também posso mudar
de identidade. Assumo-me como Malcon e sumo, pronto!" "Não
quero que ninguém seja responsável por você no futuro.
Talvez seja melhor mesmo a separação, sei lá. Ah,
essa minha volubilidade! Que tal morrer e ressuscitar em outro continente?
Mas me daria despesa demais. E agora com a internet...Você pôs
fotos suas na internet? Meu Deus, como você é burro. Terá
de fazer uma plástica. Se se acha lindo, vá tirando o cavalinho
da chuva. É, é melhor fazer plástica, e também
uma plástica no esqueletão, tirar algumas costelas." "Não
me acho tão feio se não me comparar com ninguém,
é claro. A calvíce é incipiente, dá pra consertar.
Quero ficar bem forte, triplicar os braços." "Isso
exige o que você não tem, meu menino, força de vontade.
Melhor ir a um psiquiatra." "Sarah
me disse a mesma coisa, que devo consultar um psiquiatra. Mas não
quero me intoxicar com remédios, Medéia. Quem está
tocando a compainha?" "É
um dos meus agentes, meu menino. Pedi a ele que viesse para eu ter uma
outra opinião além da minha." Um homem
musculoso e sorridente adentra a casa. É Otto, um agente muito
especial, pois tem pernas biônicas que podem pular até uma
altura de cento e cinquenta metros. É bem praiano. O governo invisível
o tem como Mestre. Otto conhece as fraquezas de todos os setecentos e
oitenta agentes espalhados pelo planeta. Carrega um Laptop de última
geração. Senta-se no sofá, sem ao menos dar boa noite.
Abre o Laptop e procura os dados de Adalto. Fica pensativo por um tempo.
Todos na sala estão quietos. Estou encostado na parede fumando
um cigarro. "É
Adalto, o senhor não é mais um dos nossos. Sabia que traria
problemas para a organização. Teremos que eliminá-lo.
Não queremos pessoas passionais, mas frias e calculistas. Medéia
está errada em querer que continue com Marjorie. Não se
preocupe, não vamos matá-lo, haja vista que o senhor foi
sempre mais ou menos bem-sucedido nessas missõezinhas que Medéia
lhe passou. Bom, vejamos: o senhor é sustentado por uma executiva,
tem fama de malandro e mole. O que eu poderia fazer para ajudá-lo?
Já sei. Terá de se suicidar, e o corpo será encontrado
em decomposição em alto-mar. Deixará uma carta a
Marjorie dizendo a razão de seu suicídio. Fará uma
plástica com um dos maiores cirurgiões do mundo. Viverá
em outra cidade praiana, uma metrópole situada ao norte do país.
E Medéia, não se preocupe, você não terá
de gastar seu rico dinheirinho. Sinto muito, mas é só isso
o que a organização poderá fazer pelo senhor, o que
já é muito. Arranje uma profissão qualquer que lhe
apeteça. Enfermeiro, por exemplo. Há ótimos cursos
ao norte. Bom, basta. Venha comigo...Dentro de quinze dias estará
tudo acabado." "Mas
eu não posso deixar Marjorie assim; ela iria sofrer. E quem iria
fazer as compras no supermercado, cuidar dos peixinhos, da casa, brincar
com o Hitler?" "Não
seja infantil. Se sua mulher é rica ela terá alguém
para cuidar dessas coisas. Vamos para o aeroporto imediatamente. Terá
de esquecer-nos, e nossas lavagens cerebrais são fantásticas.
Terá de esquecer-se." Vejo-me
no espelho e não acredito: mudei completamente de aparência.
Estou morando em uma pensão, sou um rapaz pobre vindo do sul, estudante
de enfermagem. Não sei como, mas me esqueci de toda minha vida
passada. Lembro-me vez ou outra através de flashes que existiu
uma mulher em minha vida, que ela era linda. Mas não me recordo
do nome dela. Maria? Magnólia? Flor? A cidade é pequena
e estou trabalhando como auxiliar de jardineiro. Estou gostando de mexer
com a terra, vejo gnomos, fadas e salamandras. Voo nos sonhos procurando
a casa de alguém que eu pensava me amar, mas não sei exatamente
quem é. Sinto que há alguém que sofre por mim, que
chora a minha morte. Passam dois anos e desisto da enfermagem; as mãos
tremem ao aplicar uma injeção. Conheci Brush, uma mulher
divorciada que tem dois filhos pequenos, Tommy e Thompson. Decido ir morar
com ela, que é quente, é negra e solitária. Acho
que a amo. Ela é empregada doméstica e mora no subúrbio.
Ali há violência, ouvem-se tiros constantemente. Tommy já
me tem como pai; Thompson não simpatiza muito comigo, acho que
me acha repugnante. A plástica não saiu perfeita: os lábios
ficaram finos demais, os olhos puxados demais. Quero dirigir, mas Brush
se opõe, acham-me incapaz, doente. Ela gosta de sexo, do meu corpo,
ela quer carinho contínuo. Os populares das redondezas, gente sempre
desconhecida, olham-me com ressalva. Brush vai trabalhar e trato de levar
as crianças à escola; depois vou fazer uns bicos nos jardins
das mansões. Acho que peguei o jeito para a coisa. Estou lendo
alguma coisa sobre paisagismo, estou interessando em me aperfeiçoar.
Dizem que tenho mão boa para plantar. Não sei por que a
natureza é verde. Ela poderia ser cor-de-rosa ou então azul.
Mas quase tudo nela é verde em diferentes matizes. Uma vez a dona
de uma dessas mansões me ofereceu chá com bolachas. Disse-me
que eu era bonito e que poderia em uma noite dessas, vir até uma
festa que ela promove, mas sozinho. Fiquei deslumbrado com a casa, com
a bondade dos ricos. Essa dona, Melani, quer me dar um banho de loja,
quer divertir-se às minhas custas. Ela me dá um terno de
três mil reais e algumas jóias, como pulseiras de prata e
um anel de ouro. Aceito, sim, aceito. Brush não acha isso certo
e me pede para devolver os presentes. Mas quero saber como funciono em
outro ambiente, em um ambiente glamuroso. A primeira festa é numa
sexta-feira, durante o dia, e me embriago com champanhe francês.
Descubro-me feliz embriagado, não paro mais de ir à festas,
mesmo não sendo convidado. Conheço gente interessante, penetras,
alia-mo a eles. Ganho tanto brindes! Brush não fala nada, está
em estado de choque. Chego bêbado em casa, cantando, falando besteiras.
É tão bom sentir-se leve. Mas já sabem que sou penetra,
a cidade inteira pelo visto. Finjo, digo que sou jornalista ou artista
plástico. Sinto que alguém sofre por mim, e esse sentimento
persiste dia após dia. Brush e eu terminamos, volto para o mesmo
quartinho. Ela descurtiu. Tommy chora, Thompson ri. Prometo visitá-los,
os meninos, sempre que puder. Minha vida muda, mas os opostos em um dia
só se encontram em determinada hora: a miséria e o glamour
ou algo que se aproxima dele. Inveja, agora sei o que é. Perco
festas, há competição entre penetras, sou estranho
para eles. Tenho inveja deles que não se consideram penetras, haja
vista os amigos que têm e que me veem como um ser vazio e obscuro.
Mas talvez seja uma inveja boa porque não lhes quero no fundo mal;
afinal, são semelhantes, ou seja, vivem nos meandros do eterno
"por enquanto sou nada". Quem é Hugo?, esse é
meu novo nome, Hugo Fontes. Esqueci-me do meu antigo nome. Sinto necessidade
de dirigir, de motos. Como jardineiro, ajunto um dinheirinho e compro
uma moto usada, Honda. Não sou Deus, mas vim de Elohim, não
posso praticar o ato elementar dos deuses que é o de voar, mas
guiar uma moto me faz sentir voando. Corro muito, vou a cento e quarenta
por hora pelas estradas próximas das praias, pelas encostas. Aprendi
a empinar uma moto, correr apenas com uma roda. Os populares me apontam
como um louco, um velho louco. Estou no Google. Quem quiser saber algo
mais sobre mim basta acessar Hugo Fontes entre aspas. Pus no computador
que tenho ascendência francesa, o que parece inverdade quando veem
minha foto. Garbage in, garbage out. Pareço sim um japonês
com lentes de contato azuis. A pele, amarelada pela nicotina, está
longe de ser a pele de um estrangeiro, branquinha e inconfundível.
Trabalho ao Sol, e sei que sem ele eu teria um aspecto mais pálido
assim como também as plantas. Se eu trabalhasse atrás de
vidraças não obteria os benefícios curativos dos
raios solares. Tento melhorar a qualidade de minha vida, da hemoglobina.
Uso boné, então, não somente por causa da calvíce,
mas também porque não passo protetor solar. Arrumei alguns
amigos por causa da moto e das festas, afinal, uma pessoa que tem moto
é uma pessoa sadia. Se Brush me visse sobre a moto, ficaria chateada;
ela acha um perigo, prefere carros, essas máquinas onde ficamos
fechados, trancados. Conheci um tal de Patrick em setembro; ele é
mais baixo do que eu, mas massa mais. Tem uma moto maravilhosa, verde-bebê,
uma moto ecológica o qual não registrei a marca. Desde então
temos feito pequenas viagens juntos. Patrick começou a frequentar
os eventos como bicão graças a mim. Ele tem talento, finge
muito bem ser um colunista social. Combinamos criar um site sobre cultura
e eventos, mas tenho preguiça, é complicado. Patrick é
bonitão: chega, pede o realese, vai logo entrando sem que as meninas
precisem verificar seu nome na lista; elas ficam enfeitiçadas.
Eu já não; já fui barrado várias vezes, mas
não tantas; afinal, esses olhinhos puxados e azuis deixam os homens
loucos. Os homens, quando resolvem diversificar suas aventuras sexuais,
não hesitam frente a um ocidental com componentes orientais. Mas
não sou prostituto-gay-promíscuo. Ou talvez o seja em pensamento,
ou talvez o serei no futuro, não sei. Gosto de mulher, ainda gosto
de Brush. Patrick me disse um dia que alguém precisava se responsabilizar
por mim, pois sou um doente. Patrick para mim não é sadio,
mas eu jamais diria isso a ele. Imagine que ele toma remédios com
álcool; o organismo dele parece pedir essa mistura. O meu não
toleraria. Sim, tomo calmantes alopáticos receitados por um psiquiatra
que disse que sou psicótico. Não acreditei nesse diagnóstico:
ver gnomos não é doença. Também por que falo?
"Doutor,
vejo gnomos de várias formas e tamanhos. Trabalho em jardins suntuosos,
sou bem requisitado. Vez ou outra uma madame me reconhece nas festas e
sou posto para fora. Isto é, depende da madame." "O
senhor ouve vozes?" "Não
sei, nunca perguntei a Ele. Mas sempre Lhe peço que me ressuscite
porque me sinto morto, porque sinto que há algo morrendo dentro
de mim." "E
você, que me parece alterado, ouve vozes?" "Claro,
não sou surdo. Mas não entendi sua pergunta? Ouço
grilos, o coachar de sapos, o zunido das abelhas, o pipilar dos pássaros.
Ah, talvez eu ouça o pipilar de pássaros celestes, ou seja,
de anjos. Você já não ouviu a voz dos anjos? Ouço
Patrick me dando lições de vida, e ouvia Brush fazendo a
mesma coisa. Não tenho juízo para eles." "Creio
que seu caso não seja de internação. Vou lhe dar
alguns remédios que podem lhe ajudar. Volte daqui a um mês,
por favor. Tem tido insônia?". "Sim.
Não durmo bem principalmente aos sábados. Patrick tem a
família dele, e fico sozinho no quartinho, pensando na vida, com
preguiça de ler. Quando vou ver as horas, já passam das
cinco da manhã. Meu quartinho não é tão limpo;
não troco os lençois todos os dias, como seria o correto,
já que...Mas a senhoria não tem reclamado. Na fila para
o banheiro, de manhã, leio poemas de Fernando Pessoa. Lá
onde moro é uma pensão só de homens, e a maioria
é de nordestinos. Eles tem estado perplexos com meus olhos puxados." "O
senhor fez plástica, não fez?" "Não
sei, após a crucificação?" "Você
fez uma plástica, meu amigo, e não quer me contar. Mas,
pelo que posso notar, foi muito bem feita. Os olhos não muito puxados
e azuis. Mas não cabe a mim imaginar do que se trata. Você
é malandro menos do que perdeu a memória. Você sabe
que hoje em dia, aqui neste país, a malandragem é perfeitamente
detectada. Surge um novo tipo todos os dias. A malandragem é como
uma barata: ela evolui diante dos métodos que utilizamos para exterminá-la;
os métodos vão sempre ficando ineficazes". "Sim,
devo ser malandro, sim. Não sei. Um homem que age de má-fé,
é isso. Eu mato baratas jogando nelas uma gotinha de álcool
92,8º INPM. Então logo elas serão imunes ao álcool?
É bom saber." O domingo
me irrita. Surto nos supermercados, mesmo sabendo da lei de causa e efeito.
Simplesmente surto, digo coisas horríveis a pessoas inocentes.
Volto para o quartinho esperando os homens, a polícia: não,
eles não virão me perguntar se estou bem, mas talvez me
levem algemado. E agora? E se uma cliente minha estava ali, no supermercado,
na hora do surto? Mas ninguém falou nada, são pacíficos.
Aguardo os homens, a blitz. Talvez me levem para um hospital psiquiátrico.
Fui louco antes da amnésia? Não sei, mas certamente que
sim. Lembro-me de que fui casado, mas não me lembro quem era a
mulher, o nome dela. Por que surto aos domingos, por que não me
calo? Estrago tudo, atrapalho a vida das pessoas. Ontem, regando as bromélias
que plantei no inverno passado, tive uma espécie de insight. Acho
que deveria trabalhar como padre. Mas a vocação é
falsa, a vocação que me faz ir à missa. É
provável que eu seja excomungado. Olhei-me em um espelho e percebi,
após o surto, que sou feio. Não sou um bom menino, agora,
depois de velho. Imoral, é isso o que sou, uma pessoa imoral que
julga sem saber o que fala, ignorantemente, afeminadamente. Pego a moto
e saio; dirigir me trás um pouco de paz. O pôr-do-sol é
vermelho. Sinto tanto, sinto tanto ser assim, ter feito o que fiz. Agora,
como dizem, sofra as consequências. Teria sido diferente se eu tivesse
mais amigos, se Patrick não me virasse a cara de vez em quando,
sem mais nem por quê? Jogo a moto em um abismo e por um triz quase
a mim mesmo. Ela explode lá embaixo, explodo lá embaixo,
mas noutro lá embaixo, em um lá embaixo de ignorante. O
domingo me irrita e não suporto a superioridade das pessoas; pareço
estar em outra sintonia, em sintonia com o mal, com o que existe de sinistro
na Terra. Fico a pensar na desintoxicação, que se fosse
desintoxicado agiria de outra forma, seria santinho, me adorariam. Mas
talvez me adorem e eu não saiba. O surto chama miséria,
incompreensão. Sou pernóstico, mas o que isso importa se
não vou ser artista? O surto advém da síndrome de
abstinência, é óbvio, todos sabem. Mas também
do desprezo de Patrick, intermitente. Não estou muito calmo, estou
sonado, é o calor. Amanhã terei de procurar um pé
de jasmim para Melani; ela crê em feng shui. Não sou expert
em feng shui, mas já li alguma coisa a respeito. Agora sem moto,
andarei de ônibus. O que direi aos poucos amigos? Os filhos de Brush
sempre me esperam às segundas, alegram-se quando escutam o som
da moto chegando a casa deles; mesmo Thompson, que me odeia. Sou irresponsável.
Se ao menos me lembrasse com quem fui casado. Mas não me lembro,
não há nenhum sinal em minha memória dizendo o que
fui, com quem me casei, o que fazia. Talzez eu não tenha sido nada.
Fazia poemas, disso tenho certeza. E me deu uma vontade louca hoje de
manhã de escrever um soneto. Sei como se escreve um soneto, mas
a ideia não me agrada. Muita gente deve estar feliz após
meu surto, pois mostrei o que há de mais cruel em mim. Ou será
que há algo mais cruel que aquilo, que aquelas palavras? O vício?
A noite renasce trazendo sons de grilos e solidão. Quero dormir,
mas depois do que aconteceu...Tomei a hóstia pensando no corpo
e no sangue de um homem que ninguém sabe como é de aparência.
Se soubessem, as igrejas talvez fossem maiores, estariam apinhadas de
gente. Isso indica que o mundo não é aparência, que
pessoas são chamadas às missas porque têm fé.
Os seguranças das igrejas me olham com insistência: o que
pensam? Só faço coisa errada. Talvez tenha gritado para
Barrabás pra que ele se cuidasse. Mas me disseram que não
havia somente três cruzes no gólgota no dia da crucifixação
de Jesus, mas várias outras cruzes, várias outras pessoas
sendo crucificadas. Estou fora disso. Sim, tomei a hóstia pensando
em entrar em harmonia com a realidade, com a atmosfera da cidade. Mas
não, não foi bem assim. Não me acalmo, os homens
não vêm. Se eu for fichado serei também preso. Terei
de dar justificativas de um malandro. Não sei me justificar bem.
Não durmo, caio na devassidão de madrugada. Não ousei
tomar os remédios que o doutor prescreveu. Mas comprei-os. Tomo-os.
Após duas horas, por volta das seis, adormeço. O que direi
a Melani? Justificar-se falando que tive insônia não pega
bem; era preferível ter ficado acordado. Acordo meio-dia em ponto.
Sou pontual para o meio-dia, um degenerado. Aos poucos, o dia anterior
vai ficando claro: a moto jogada no abismo após os surtos, a devassidão...Resolvo
tirar o dia livre, pois um malandro quando tira o dia livre deve inventar
uma história bem convincente, mas não sei se primeiro para
si mesmo ou depois para os outros; isso me incomoda, tirar o dia livre;
parece imperdoável em mim, não em outras pessoas. Ponho
o celular para carregar e vejo que Melani me ligou. Não só
ela, Patrick também. Mas já nem sei quem é Patrick,
nem sei como o encontrei, se é da polícia ou outro doido
no mal-sentido como eu. Ah, sim, ele é um filhinho de papai, ele
é o bonitão. O bonitão me ligou querendo saber se
há festa hoje. "Olá
bonitão, ligou pra mim?" "Sim,
mas foi por engano. Sei de um evento hoje que acho que você deveria
ir: ao Fashion Week. Você entra com a carteira de jornalista ou
então fica na entrada; os seguranças acabam deixando você
entrar. É o que dizem, mas nunca fui ao Fashion Week. Ih, parece
que a ligação vai cair..." "Alô,
alô?" Patrick
pôs uma ponte, deve estar mais agradável ainda. Cobriu os
buracos nem tanto visíveis, mas agora pode sorrir abertamente.
É patente a rejeição dele para comigo. Quando me
rejeitam assim, não se justificam. Mas me pus no lugar dele, de
Patrick; senti-me rejeitando uma pessoa, e vieram-me à mente pessoas
que eu rejeitaria: velhas e ridículas, talvez possessivas, talvez
ameaçadoras com relação a minha privacidade. Ou capiais.
Estou magoado, pois em toda rejeição que sofro há
um mistério, e esse mistério pode estar ligado à
morte, à demência. Mas no caso de Patrick, sei que outra
hora ele ligará como se nada tivesse acontecido. Ele tem muitos
problemas, como todo mundo. Ligo para Melani, mas cai na caixa postal.
Ela deve estar recebendo amigos, mas sem o jasmim que tanto queria plantado
no jardim dela. E eu estou de novo só. Abro o jornal e leio a manchete:
ESPOSA DO NOVO
PRESIDENTE, MARJORIE CLARA, PRATICA YOGA. Que mulher linda, tão
jovem para uma primeira-dama! Conheço-a de algum lugar, mas de
que lugar nem imagino. Resolvo escrever um soneto, um soneto dedicado
aos deuses... Os deuses voam. |
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