O
EQUILIBRISTA
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Daniel
Oliveira
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Um fio se estica sobre a rua. Vai até o beco, onde se finda o que em toda a vida esperamos. Sânsio sabe das coisas, sabe que não pode cair, não pode ceder. Três ou quatro vezes já pensou em pular fora do fio, mas sempre estanca o desejo na hora H. Ele observa o fio. Esquadrinha. É um fio muito fino. Questão de equilíbrio, de ajuda de Deus. Sânsio segue vagarosamente caminhando, os braços abertos, como quem abraçasse o invisível. Ele olha com constância a sua frente, apenas para além daquele seu alvo que lhe instiga as artérias, que pede para ser alcançado. Às vezes, quando cospe, quase cai. Mas depois se apruma, postura ao revés, bebum. O pior de tudo é quando lhe chegam aos ouvidos as vaias. Sim, as vaias do povaréu que o acompanha em seu trajeto suicida. No meio deste povo não há quem o entenda. Incrível, centrado, Sânsio não se apavora, nem murmura maledicências. O que retruca apenas são uns gestos que alma alguma ali presente compreende - dança e zanza no balé da navalha sob seus pés. Ele, o homem equilibrista, não olha para os lados, não mostra o rabo do olho nem o dedo obsceno. Sânsio dá mostras de respeito, não zomba. Antes, ignora. Segue. Quer chegar, embora houvesse pessoas que não o quisessem. Uns tantos pulam para verem se alcançam o fio sobre o qual está o homem que equilibra as atitudes. Pulam para tentar cortar o fio com tesouras, dão gargalhadas, gritam em coro: - Cai, maluco! Cai, maluco! Sânsio, como toda a vida, não se abala. Mas a bala, a bala passa cortante à superfície dele próprio. Continua, entretanto, íntegro. Dentro dele não existe oco, mantém-se inteiro, cônscio. Ele nem cara feia faz. Apenas, forçado, sorri um sorriso displicente, sem afrontas. Crê que estão loucos, fora desta esfera. Ignora sempre. Continua. Sânsio está vestido, ainda tem roupas que revestem seu corpinho magro. E faz fogo debaixo dele, sua língua para fora, gotejando, a desejar limonada. - Oh, gente boa, quero seguir avante. Piedade... Zoar não me zoem... - diz ele, como num sussurro. Súbito, as pessoas param e fazem silêncio. Querem escutar o homem. Querem saber da parte dele o que o faz caminhar sobre um fio de arame farpado, de uma extremidade à outra da rua. Tentam decifrar o mistério que envolve a atitude do persistente homem. Mas nada Sânsio expressa como reação espontânea aos gracejos de toada a gente perversa. Está concentrado. Não pode falar, senão cai, machuca-se, derrotado depois. É certo também que, se cair, será pisoteado, feito em migalhas. Muitos esperam o momento para isto, para o extermínio de seu sonho, de seu swing caiaponiense. Acham que ele não vai demorar a sucumbir-se na apoteótica queda livre de ar a mar (de gente, de monstros...). Pois mais um tempo, e Sânsio já mostra ares de cansaço, cristal quase já rachado pelos raios indigestos da ira do povo. As suas pernas parecem ficar cada vez mais tontas, gelatinosas. Às vezes vacilam, mas logo se aprumam de novo. Assim mesmo ele vai seguindo, enquanto a multidão embaixo nutre um ódio incompreensível. Talvez por não viverem aquela mesma ousadia, a mesma discrepância com o mundo. O que querem é apenas sacanear com o pobre Sânsio. Apoio não há para ele, senão o de uma criatura pequenez que, deslumbrada, entende por si o propósito daquilo tudo. - Gosto deste felhadaputa, mamãe. Os homens de rostos feios e de punhos cerrados retrucam, todos juntos: - Um maluco! Um maluco! Um maluco ele é! Ele não gosta! Ele não gosta de muié! Entanto, Sânsio continua - e sempre!- em sua trajetória cheia de meandros. Estava o homem decidido, mesmo agora em meio à chuva de pedras e calúnias. Este o fato. Pedras voadoras de encontro a seu corpo, minguando seu estado íntegro de ternura. Mas ele resiste: um mártir em seu entender próprio. Ninguém havia que colocasse obstáculos à chuva incessante de pedras e seixos que vinham em sua direção. A criancinha sob ele nada podia fazer senão vislumbrá-lo no cai - não cai. Providencial Sânsio possuir exímio dom de trapezista. Era hábil, sabia se equilibrar como nenhum outro. Trabalhou durante muitos anos num circo, tinha as manhas. O que não suportava era a dor de ser apedrejado. Não entendia o porquê de tanto escárnio, de tanta rixa contra ele, sujeito simples que jamais ia querer se mostrar por prazer. Sabia também das histórias do Cristo, e isto o confortava sobremaneira, em vista de que em seu modo de ver os matizes da vida cristã, o que ele fazia ali sobre o fio da navalha era algo exemplar. Sim. Sânsio fora palhaço de circo. E justamente este fato provocava na multidão certa maldade de inveja. Achavam que sua habilidade circense fosse uma afronta às suas faltas de capacidade em fazer alguma coisa que surpreendesse de grande forma. Não toleravam o fato de ver Sânsio homem equilibrado, mais cheio de si, quebrando limites que o tornaria mais tarde um homem santo talvez, para muitos. E neste lero-lero, zomba-zomba, cai - não cai, pois enfim chega a noite. Quase 24 horas. Sânsio parece dormir de olhos abertos, mas seu inconsciente maneja seus músculos e membros, encaminhando eles rumo ao trilho certo, ao cetro providencial. Há um quê de desordem em seu espírito, ele se vê náufrago de um turbilhão de gentes sem escrúpulos. Falta, porém, poucos metros; ele segue, já coisa difícil de não fazer, inevitável. Ele, Sânsio, não é maluco. É sujeito que enxerga apenas o front que vai além de seu nariz, do seu corpo antes imóvel e imutável. Finalmente, chegando Sânsio a dois metros da extremidade ofuscada do fio, ele tristemente cai... Aí a multidão não perde tempo. Era, pois, a chance. Pisoteiam Sânsio, esmigalham sua resistência já arrefecida, explodem-no aos pontapés e pauladas, até que alguém dá alarme de advertência: - Polícia! Polícia! Então, em frangalhos, gemendo frio e suando sangue, Sânsio morre, boquiaberto, gotas de sangue dando saltos para o ar, como a quererem chegar ao alvo, tão frio e tão distante... |
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