Atualização 185 - Tema Livre
BIOGRAFIA
CADÊ MEU CALÇÃO?
Antonio Carlos Vellasques

- Mulher, arrume as coisas para mandarmos ao pessoal de Santa Catarina.

Bem, a frase acima não é nada original, e foi dita milhões de vezes nas últimas semanas. Tocados pelo sofrimento do povo catarinense, resolvemos doar o que fosse possível, e eu combinei com a minha cara metade que faríamos isso o mais rápido possível.

- Vamos entregar roupas e alimentos na igreja, o pessoal vai enviar tudo no começo da semana para os flagelados.

Eu mal poderia imaginar até onde vai o engenho vingancista de uma mulher quando combinei com a Suely o envio dos materiais. Há algumas coisas que elas nunca dizem, que guardam a hora certa para darem a forra, para a vingança mais soez e solerte. Ela com certeza já estava esperando pela oportunidade certa para me desferir o golpe certeiro.
Cheguei a casa à noite, e para meu espanto encontrei uma pilha de roupas dobradinhas sobre a cama:

- É para mandar para lá. Já organizei tudinho - disse ela. - Nem é preciso conferir.

Assim fizemos. Pegamos as roupas, passamos num mercado, compramos alguns víveres e levamos tudo para a igreja. Até esse momento eu ainda estava acreditando na bonomia do ser humano.

Segunda-feira

Como sempre cheguei do serviço arrastando os cascos. Moído e desanimado, cumpri o ritual diário de tomar meu cafezinho da tarde assistindo qualquer porcaria na tevê, enquanto empanturrava meu cachorrinho com bastante gordura. Eu adoro levar broncas. Entre uma manguinha e uma ou duas bananas, meditei que algo estava errado naquela tarde. Imaginei tratar-se de minha imaginação apenas, pois foi a primeira vez em anos que eu encontrei o café posto à mesa, que estava fornida de coisas que eu adoro. Algo estava sendo preparado, algo não estava no lugar.

O dia havia sido muito quente. Suando em bicas, depois do cafezinho frugal e rápido, subi para o banho. Foi aí que me dei conta do desastre.

- Suely, onde anda aquele calção azul que eu adoro?

- Aquela porcaria do tempo do guaraná de rolha? - ela resmungou da cozinha.

- É, aquela maravilha, o único calção que me deixa à vontade. Nada daquelas coisas que você compra para mim na Marisa.

- Pois procure. Aquela droga deve estar em algum lugar. Só você para andar feito um molambo com aquilo.

O dito calção é uma peça rara, verdadeira jóia do mais alto estofo. Eu o comprei há uns quinze anos, no mínimo, e costumo usá-lo para me sentir mais à vontade - cabe o Jô Soares dentro dele -, mas também para espicaçar minha esposa, que detesta a peça. Ela já me comprou inúmeros calções e bermudas, um pior que o outro, nada que chegue ao dedinho de meu amado calção azul.

- Olhe aqui, dona Suely, antes que a gente entre em crise: onde está meu calção?

Silêncio.

- Vou perguntar de novo: onde é que...

Parei a frase no meio. Da cozinha subiu uma sonora gargalhada, daquelas maldosas, de vingança e alívio. Não se contendo, a Suely subiu as escadas, rindo um bocado.

- Então você não achou aquele trapo? - disse ela rilhando os dentinhos da frente.

- Até agora nada. Vamos para de brincadeira, que eu preciso tomar meu banho.

Silêncio.

As mulheres não conseguem manter nada em segredo muito tempo, e Suely, enxugando as lágrimas, confessou o que havia aprontado. Meu calção foi junto com as roupas para o pessoal das enchentes!

- Eu disse que um dia daria um fim naquela joça! E que final, hem? - disse ela.

- Você não fez isso...

- Ahá, fiz sim.

Tomei dois ou três comprimidos de Pasalix, tamanha a força do golpe. Como uma tragédia dessas foi acontecer? Dei tratos à bola desvairado, alucinado. Meu calçãozinho! Alguma coisa teria de ser feita para recuperar a preciosidade, e teria de ser urgente. Liguei para a igreja, disfarçando um pouco a voz, porém a atendente me informou com visível júbilo que o caminhão com as coisas já havia saído na noite anterior mesmo.

- O pessoal da enchente tem pressa em receber as roupas e alimentos, meu irmão, e estou agradecendo sua colaboração em nome de nossa equipe.

Agradecendo? Pombas, eu estava desesperado! Olhei para minha amantíssima esposa, que a um canto da sala esfregava as mãozinhas em visível êxtase. Porém, e sempre há um porém, eu ainda não me considerava derrotado.

O jornal A Notícia, de Joinville, é conhecido como o único matutino que não resiste a duas idas ao banheiro. Só dá para ler as páginas um e dois e acabou-se o jornal. Pois foi justamente na página dois, onde se localiza o editorial, que o Editor-chefe, numa linguagem virulenta, comentava o fato mais marcante do dia anterior:

"Estranho caso abala Itajaí

Um desalojado e desabrigado foi atacado com sanha de crueldade no dia de ontem. Os fatos ainda estão sendo investigados, porém pelas informações colhidas trata-se do primeiro caso comprovado de ataque sexual histérico devido à catástrofe. O desabrigado caminhava pelo centro da cidade quando foi subitamente atacado por um maníaco, que aparentemente não se interessou por uma coxa de frango que a vítima comia no momento, mas sim pelas roupas do pobre homem. Num acesso de raiva o atacante arrancou o calção da vítima e saiu correndo. As autoridades estão investigando".

Voltei a dormir tranqüilo.

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