CHIQUINHA
DE JESUS
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Maria
Luísa Rocha
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Vera sempre foi uma mulher decidida. Tornou-se conhecida no bairro onde morava porque toda tarde saía de casa com uma sacola vermelha e ia para a pracinha alimentar os cães e gatos sem dono que ali viviam. As pessoas olhavam a cena com os mais diversos sentimentos: uns achavam graça, outros a desprezavam. Havia também quem a chamasse de louca, de desocupada. "Lá vem a mulher do saco vermelho", até música fizeram para ela. Vera não se incomodava com estas pessoas. Seus olhos só enxergavam a alegria dos pequeninos quando os alimentava e distribuía carinhos. Várias vezes ela precisou carregar para casa algum que estivesse ferido e cuidou do coitadinho até ele se recuperar. Muitos eram vítimas de atropelamentos, outros simplesmente eram maltratados sem nenhuma piedade. Uma vez Vera até chorou. Foi quando ela se deparou com Totó, um vira-latinha esperto, malhadinho, com queimaduras em quase todo o corpo: o dono da pastelaria em frente à pracinha havia jogado óleo quente nele porque estava comendo as migalhas de pastéis na rua. Totó não sobreviveu e Vera teve que enterrá-lo no fundo do seu quintal. Como ela sofreu neste dia! Parecia que tinha perdido um filho... Em uma tarde chuvosa, Vera estava atravessando a rua distraidamente e não percebeu um cavalo que vinha em sua direção, puxando uma enorme carroça cheia de entulhos. O carroceiro parou ao ver que a mulher havia caído e gritou com rispidez para ter mais cuidado. Ela levantou-se ainda meio tonta e seus olhos encontraram-se com os do cavalo, fixos nos dela, implorando socorro. Esqueceu imediatamente do joelho ferido e passou a observar melhor o animal: era uma égua muito magra, cheia de feridas pelo corpo, parecia jovem ainda. Então começou a discutir com o condutor, falando que ele deveria cuidar melhor da coitada, que o peso da carroça estava excessivo, que aquilo era maldade demais. O homem debochou da cena e de tanta confusão: era apenas um animal. Finalmente, a mulher propôs comprar a égua e, após muita negociação a respeito do preço, conduziu-a para casa. Batizou-a de Bailarina, pois achou suas pernas magras e tortas parecidas com as de uma dançarina de um filme que vira quando menina. No dia seguinte, Bailarina foi embora para o sítio de Toninha - vizinha que se comoveu com o caso - aonde iria finalmente ter uma vida em liberdade e sem sofrimento. E assim os anos foram passando. Vera ficou conhecida como o Anjo dos Cavalos. Além de resgatar aqueles muito machucados, comprando-os dos carroceiros, passou a ensinar como cuidar deles de maneira correta. Vivia cheia de dívidas, pois poucas pessoas que conheciam seu trabalho podiam ajudá-la, mas, inexplicavelmente, os cavalos iam sendo resgatados e conduzidos para sítios de pessoas que iriam amá-los e dar-lhes respeito e dignidade. Um dia, quando caminhava em direção a um hospital para visitar uma égua prenhe que acabara de socorrer, Vera parou de repente, boquiaberta. Acabara de avistar uma carroça e, à frente dela, achou que estava diante de uma miragem. Uma minúscula jumentinha, com pouco mais de cem quilos. Parecia até um cachorro de porte grande. Inacreditável. Ainda pasmada, parou o homem e perguntou como aquilo era possível. - Dona, é só uma jumenta estúpida. Ria e achava graça de tanto desconforto. A jumentinha estava bastante queimada e com a pele sangrando em alguns lugares. O joelho direito estava inchado, tinha um ferimento profundo, mas pior foi ver o que aconteceu com suas orelhinhas: estavam dobradas e presas com arame, extremamente deformadas. O homem explicou que fizera isso para ela aprender a obedecer. O quadro era desolador. Mas o pior mesmo foi perceber o olhar dela. Meu Deus, quanta tristeza! Pediu que os dois rapazes descessem da carroça. O dono ainda tentou retrucar, dizendo: - Esse troço já está velho. Nem faço questão dela. Por mim deixava esta porcaria em um lote que puseram fogo, aqui mesmo no bairro. Se ela queimasse seria pouca coisa a perder. Mas tudo bem, vamos conversar. Definiram o preço e a jumentinha foi salva. Saiu dali conduzida por uma corda velha. Andaram doze quarteirões até chegar a um hospital veterinário. Alguns dias depois, ela recebeu o nome de Chiquinha e pôde, finalmente, começar uma nova vida, no sítio de Raquel, uma prima da veterinária. Vera dizia a todos que Chiquinha se aposentara no auge da juventude. Poucos meses depois, ela estava mais gordinha e já olhava para cima, sem medo, quando alguém humano se aproximava. Um
ano depois, uma novidade trouxe-lhe imensa alegria: a chegada de Vitorinha,
outra jumentinha que fora salva. Imediatamente, tornaram-se amigas. Passeavam
lado a lado durante as manhãs, só parando para comer as
mexericas da parte baixa da árvore. As pessoas riam muito quando
viam O mês de dezembro trouxe chuva fina. Na véspera do Natal, quando as duas amiguinhas descansavam debaixo de uma árvore, Chiquinha lembrou-se de algumas histórias que sua mãe lhe contava quando ainda era bem novinha. Resolveu partilhar tais lembranças com Vitorinha, explicando que deveria ser alguma coisa muito importante, pois sua mãe enchia os olhos de lágrimas toda vez que repetia as histórias. E contou que, há muitos e muitos anos atrás, uma estranha estrela apareceu no céu, anunciando o nascimento de um meninozinho muito lindo que se chamava Jesus. Ele era um rei, embora tenha nascido em um estábulo muito pobre. Naquele presépio havia alguns animais, mas quem aqueceu o pequenino com seu hálito morno foi um humilde jumentinho, assim como elas. Chiquinha deu uma parada na narrativa porque reparou que não estavam mais sozinhas. Aos poucos, timidamente, foram se aproximando delas os passarinhos, as ovelhas, os bois e as galinhas, os porcos e os marrecos. O vento silenciou e as flores ajoelharam-se. Chiquinha emocionou-se e continuou a contar o que sua mãe lhe dizia: Um dia, este Rei cresceu e transformou-se em Homem. Ele fazia muitas coisas mágicas, como curar aleijados e acalmar o mar bravio. Até cegos voltaram a enxergar. As pessoas passaram a amá-Lo e a respeitá-Lo, procurando ouvir suas palavras de amor. Até que, em um domingo ensolarado, Ele entrou em uma cidade chamada Jerusalém, aclamado por todos, em cima do lombo de outro jumento. As pessoas O saudavam com ramagens, chamando-O de Rei dos Judeus. - Viu como somos importantes, Vitorinha? Chiquinha interrompeu a história, cheia de orgulho. Nossos parentes serviram duas vezes ao Rei dos reis. Vitorinha sorriu e concordou, com seu sorriso desdentado. A partir daquele dia, Chiquinha passou a ser chamada de Chiquinha de Jesus e teve que repetir suas histórias muitas e muitas vezes, pois cada vez era maior o número de animais que queriam conhecer aquele rei Jesus. Em certas ocasiões, Chiquinha teve que inventar um pouco; afinal de contas, sua mãe teve pouco tempo de convivência com a filha, logo foi levada para puxar a carroça de ciganos. Vocês pensam que esta história acabou? Estão enganados... Ela só terá fim no dia em que Vera não precisar comprar e aposentar mais nenhuma Chiquinha, nem as Vitorinhas e as Bailarinas e tampouco os milhares de animais sem nome que andam por aí dia e noite, puxando pesadas carroças pelos asfaltos das cidades sem alma... |
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