Atualização 184 - Minicontos de natal
BIOGRAFIA
O BONDE DA ESPERANÇA
Eduardo Prearo

Clarissa ainda tinha doze anos naquela manhã do Natal de 1945. A bomba A acabara de ser lançada sobre Hiroxima e Nagasaki e a menina não entendia por que os homens guerreavam em pleno século vinte. Ela ouvira que na pré-história os homens já lutavam entre si por causa de alimento, não sabia ao certo. Na véspera do evento natalino, Clarissa pusera lindos sapatinhos cor de laranja na janela: diziam que sapatos colocados em janelas atraia o Papai Noel. Ela queria um carrinho de presente. Veja só, um carrinho. Mas não dissera isso a ninguém, pois a meninas era errado querer brinquedos do universo infantil masculino. Sim, sentia-se de certa forma culpada por isso, por querer um carrinho, um daqueles carrinhos de ferro, talvez um bonde. Papa sempre a levava para passear de bonde, e ela achava os bondes incríveis. Papa já estava com quarenta anos, mas Clarissa não o achava velho. Nevava muito e ainda eram sete horas. O Papai Noel não viera, a árvore estava sem presentes. Papa já havia lhe dito que naquele Natal o Papai Noel não viria, e não falou o porquê. Ela retirou os sapatinhos da janela com delicadeza e resolveu esperar todo mundo acordar: vovô, vovó, Totó, Papa e Mama. Tio Ernest disse que viria de tarde. Quem sabe ele trouxesse presentes? Por que crianças sempre gostam de presentes? A compainha tocou e Clarissa foi correndo atender. Era um homem esquisito, mendigo. Foi logo entrando, dizendo ser da casa. Imagine, da casa. Nunca o vira mais gordo! Mas não fez nada para impedir sua entrada, afinal era pequena e pacífica. O homem sentou-se no sofá e mexeu na imensa bolsa que carregava consigo, cheia de ferro velho. Tirou dela um bonde em miniatura. Não era um bonde perfeito, pois faltavam uma ou duas rodinhas, mas era um bonde. Depois, ele disse:

"Quer este bonde? Não, você iria preferir uma boneca, mas não sou o Papai Noel".

"Coincidência! Eu estava justamente querendo um bondinho assim de presente. Qual é o seu nome?"

"Oscar, Oscar Wilde."

"Oscar Wilde, o escritor? Mas você já não morreu?"

"Viajo no tempo sempre que possível, e disfarçado. Posso acender um cigarro?"

"É pobre, mesmo um pobre disfarçado, e tem dinheiro para cigarros? Papa odeia cigarro, e se sentir o cheiro disso vai acordar...Melhor não, moço. Seu cabelo é tão bonito...parece até que...parece até que você leva uma vida boa."

"Querer levar vida boa é pecado para poucos. Olha, eu trouxe um bondinho, trouxe um carrinho de corrida, canetinhas, agendas, trouxe também esta caixinha de música; e olhe, este pingente de ametista."

"Como adivinhou que eu queria um bondinho?"

"Não sei como, mas captei seu desejo. Você está lendo meu livro, o Retrato de Dorian Gray, não está?"

"Sim, estou lendo sem que ninguém saiba, pois não é um livro apropriado para pré-adolescentes, você bem o sabe, não é? E já que gosto do proibido, acenda o seu cigarro para que eu possa experimentar."

"Sim, pronto. Tome. Na verdade, eu não fumo"

"Cof, cof, que coisa nojenta. Estou tonta! Papa vai acordar, apague, apague! Jogue isso fora; não, dê-me isso aqui. Oh, a árvore está pegando fogo. Fogo! Fogo! Foi por causa do cigarro."

A árvore de Natal se incendiou toda em questão de segundos, provocando sons agudíssimos. Os enfeites, vermelhos e de cera, derreteram-se, sujando o chão. Papa desceu de pijamas e, parando na escada, fez uma expressão de fim do mundo. Ordenou para que Clarissa fosse para o quarto. Ela se recusou, alegando que estava fazendo companhia a Oscar, ao próprio Oscar Wilde em pessoa!

"Não há ninguém aqui, menina. E como você ateou fogo nesta árvore? Olhe, o teto ficou preto. Merecia umas palmadas. Já lhe disse para não brincar com fogo. Ficará de castigo, hoje. E o que é isso? Um pequeno bonde de ferro. Você vive trazendo objetos da rua, é perigoso, contêm micróbios."

"Querido, o que houve?"

"Sua filha aprontou mais uma vez. Talvez esteja descontente porque o Papai Noel não veio. Saiu para a rua sem permissão e catou este pequeno bonde no lixo, creio eu. E olha só a árvore, esta árvore de uns oitenta centímetros! Restam-lhe somente galhos negros."

"Oh, querido, você sabe que Clarissa é hiper-ativa. Não a censure. Isso acontece, são coisas da vida. Mas Clarissa, por que pôs fogo na árvore?"

"Eu...bem, eu estava acendendo uma velinha, e aí aconteceu o que aconteceu."

"Não a censure, Papa. E olha o que ela achou. É um presente de natal que parece ter-se materializado aqui, nesta casa. Aposto que foi no lixo da vizinha, a que coleciona antiguidades, que você o achou, Clarissa."

"Sim. E agora eu quero dar o meu presente a vocês: um desenho que fiz de um bondinho, do bondinho que Papa sempre me leva para passear."

"Talvez eu mostre isto ao psicólogo dela, querida. Deve haver uma razão para essa menina ter essa fixação por bondes."

"Oh, obrigada, Clarissa, é um desenho lindo. E você aí, Papa, não fique querendo decifrar as coisas. Somos todos normais. Bom, tenho muito o que fazer. Ninguém come carne nesta casa, e não tenho ainda idéia do que fazer para a ceia."

"Nada de algo imitando um Peru ou uma galinha, por favor, querida. O que a pequena Clarissa sugere?"

"Bolo de chocolate, torta de milho, sopa de legumes, coisas assim. Ah, e por que não um suco de soja?"

"Soja? Mas o que é isso, soja? Minha filha está além de seu tempo, Papa. Estou preocupada, pois Ernest vai querer carne, e também porque o Oficial disse que até o Ano Novo apareceria por aqui para nos intimar."

"Tem que vir com mandado."

"Querido, eu já lhe disse. Esta casa não é nossa. Você não foi falar com a dona do asilo. Vão debochar de você caso fale em mandado. E não é hora de falar nesse assunto. Sou mesmo uma burralda. Vivo com um homem pobre, vivo dos bicos dele. Por que fui me casar?"

"Sua filha está ouvindo, não percebe, está maluca?"

"Ah, quem dera eu fosse uma santa. Sei que aqui tudo é finito, mas Ingmar, onde vamos parar? Ernest é só, vive em uma pensão, e vovô e vovó não têm nada. O que faremos? Os vizinhos nos desprezam. Você sabe que sofremos preconceito por causa de Ernest, por causa da pobreza. Esse bairro é de certa forma rico. Ingmar, vagabundo. Isso é tudo."

"Não chore, mama. Você não gostou do desenho? No ano que vem tudo irá melhorar, eu aposto. Por que você não vai trabalhar fora, em vez de ficar tricotando coisa que ninguém compra?"

"Pare filhinha. Temos que pensar. Somos uma família isolada nesta comunidade, uma família considerada malandra. Temos fama de ladrões."

"Querida, eu já lhe falei que devíamos partir em um navio para o Brasil. Lá não tem ignorante, lá é um país alegre, em desenvolvimento. Ernest cuida dos velhos para a gente."

"Você está sendo desumano, Ingmar. O que eu iria fazer na selva com a idade que tenho? Seríamos todos cozinhados pelos índios da Amazônia, viveríamos na maloca."

"A vizinha tem um televisor."

"Mama sabe, filhinha. E nos temos um rádio, o que é bem melhor. Agora pare de choramingar porque não temos televisor. Já sei, tive uma idéia! Vamos sair por aí pedindo."

"Não, eu não vou me rebaixar."

"Pára de ser orgulhoso, homem. Já está rebaixado. Não é possível que não haja ninguém que não possa nos ajudar. Ficam em silêncio, debochando. Na certa têm compaixão e falta de tempo; vivem bem suas próprias vidas. Minha compaixão por eles não é maior, eu sei, mas isso me incomoda. E além do mais, no ano que vem, haverá mais empregos, tenho certeza. Recuperaremos a dignidade e ninguém mais nos virará a cara de uma hora para outra. As pessoas ao redor não moram de aluguer, deram certo. Por que não podemos também dar certo, começar tudo de novo?"

"Vai ser difícil. Você sabe como essa populaça desconhecida sabe o que a gente nem imagina que a gente seja. A polícia vai bater na porta...bater, ouviu, não tocar a campainha, bater na porta uma hora, e vai nos acusar de tudo de ruim que você possa imaginar."

"Você está sendo paranóico, Ingmar. Por vezes acho que você é homossexual, não sei. Estranhos esses seus pensamentos..."

"Mama, o que é um homossexual?"

"É um homem que não bota o próprio peru na greta."

"Não entendi nada, Mama. E o que que tem de um homem não botar o peru na grelha, aqui ninguém come carne?"

"Um dia você irá entender, filhinha. Bom, não há nada a fazer no momento. Estão todos a festejar, felizes, e nós, olha só em que ponto chegamos. Não temos mais dignidade!"

"Pare de falar em dignidade, mulher. Ainda há muita esperança. E ser indigno é ser vítima constante de deboche, por acaso?"

"É, é, talvez seja. Sensibilidade é o que nos falta. O populacho, como o senhor diz, tem essa sensibilidade para fazer a coisa certa; nós não. E não diga mais nada, Ingmar, pois do jeito que as coisas estão, as paredes têm ouvidos, e até elas podem quererem retaliação. Não sabemos o que fazemos, não sabemos."

Clarissa pegou o pequeno bonde e colocou-o sobre a mesa. O bonde reluzia. Vovó desceu com cara de o-que-está-acontecendo-aqui e sorria um sorriso misterioso. Ela segurava um envelope.

"Aqui estão todas as nossas economias, as minhas e a de seu pai, cara Merion. São mais de dez mil dólares. Chega. Se o problema era o dinheiro, está resolvido, pelo menos por enquanto."

"Como? Vocês guardaram esse dinheiro esse tempo todo?"

"Sim, guardamos. Esse dinheiro atravessou a guerra, atravessou a década de trinta sem que ninguém pusesse um só dedo nele. E agora, neste Natal, resolvemos dá-lo a vocês."

"Mas isso é muito bom para ser verdade, não é Ingmar? Eu não acredito, não acredito. Será que merecemos ser até mais felizes que esse populacho desconhecido e altamente hostil? Ainda não estou acreditando, não estou acreditando."

"Merion, ouça uma coisa. Eu e seu pai não íamos dar esse dinheiro a vocês, dois que não têm muito juízo, mas em consideração a Clarissa, voltamos atrás. Isso iria pertencer a uma instituição de caridade. Bom, espero que esta manhã fique guardada como uma manhã mágica e também corriqueira. Clarissa, esse seu bonde também é mágico. Ele devia ter um nome, não acha?"

"Sim, e tem: é um bonde chamado esperança."

"Ah, o bonde da esperança. Bom, Feliz Natal"

"Feliz Natal, vovó."

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