FILHO
DO MEDO
|
|
Claudio
Alecrim Costa
|
|
Para mim, o Natal tem um significado diferente. Ao contrário da alegria
humana que impregna a todos, as lembranças ainda me causam medo.
Por isso, encolho-me num canto e meus olhos correm ligeiros em todas as
direções, enquanto taças iluminadas pela luz brilham
em bolas de cristal mágico, penduradas na árvore, que guarda
mais do que adornos e presentes empilhados, de onde se ouve vozes perdidas
e risos cada vez mais distantes...
Enquanto minha mãe cuidava da ceia, meu pai e meus irmãos mais velhos ocupavam-se com a ornamentação da árvore, entre risos e comentários sobre o velho que depositaria presentes debaixo dela. Olhavam para mim com expressões curiosas e encenavam um teatro, cujo único espectador era eu. - Afonso, não perde por esperar o velho com os teus presentes! - gritava minha mãe. Ainda hoje, quando olho para os meus filhos e minha mulher, transporto-me instantaneamente para aqueles dias... Depois
de um lauto farnel, com arpejos vindos de um velho rádio esquecido
no canto da casa, misturando Gabriel Fauré a ruídos, minha
mãe me - Amanhã terá uma surpresa quando acordar, Afonso! - insistia. Apesar dos meus oito anos, eu era comprido como uma sequóia, e meus pés arrastavam-se no chão quando ela me balançava, sentada na velha cadeira cheia de estalidos, como se resmungasse do excesso de peso. Senti o macio de minha cama, enquanto meu pai deixava para trás o mobiliário de formas indefinidas, como criaturas encantadas pela noite. Esperava a misteriosa visita do velho carregado de presentes quando o vento abriu violentamente a janela. Pensei em permanecer na cama. Seria ele? Levantei-me e acendi a pequena lamparina. Da mesma janela, pude ver uma enorme sombra correndo lá fora. Atravessei o corredor escuro até a escada. Desci, degrau a degrau, até chegar à sala. A lamparina mal iluminava a mesa, onde garrafas se juntavam a pratos sob um vozeio esquecido e distante. Um grito abafado dentro de mim explodiu quando vi a mesma sombra próxima à árvore de Natal. Estava agitado e remexia os pacotes espalhados. Estiquei a lamparina na direção da árvore e pude ver os traços indefinidos do monstro. Sua cabeça raspava o teto. Parecia um animal, mas seus movimentos confundiam-se com os de um homem. Encarou-me assustado e se aproximou devagar. Eu não conseguia nem sequer respirar. Tinha as pernas bambas e o suor brotava em todo meu corpo. Pude então ver melhor os olhos grandes e vermelhos que me olhavam fixamente. Seus dentes eram iguais aos de um animal selvagem. O terror que sentia, aos poucos, cedeu a um sentimento estranho, como se já nos conhecêssemos. De repente, um barulho de porta deixou a criatura assustada e sem direção... -
Quem está aí? - escutei minha mãe gritar - Afonso, o que faz sozinho aí parado? - perguntou meu irmão. Minha mãe agarrou-me no colo e correu por toda a sala em desordem sem acreditar no que via. - O que aconteceu aqui? Não consegui expulsar as palavras que guardei até hoje dentro de mim. A expressão de espanto de minha mãe, sem entender o que acontecia, meus dois irmãos perdidos no meio da bagunça que o animal havia feito e a janela aberta por onde fugiu sem deixar vestígio... Hoje, depois das festas natalinas, me escondo silenciosamente no sótão de minha casa sob o olhar compreensivo de minha mulher, que me ajuda a conviver com a herança de meu pai, a única pessoa que não apareceu naquela noite em que me vi diante de meu destino. |
|
Protegido
de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto
acima sem a expressa autorização do autor
|